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segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Hora do Lanche


Li, não há ainda muito tempo, um texto de Eugénio de Andrade, no qual o poeta descreve uma visita que ele fez ao seu confrade Teixeira de Pascoaes, quando este se encontrava já muito doente. Eugénio de Andrade, além de escrever poesia de forma sublime, escreveu prosa igualmente bela.

Agora, veio-me parar às mãos um poema de Manuel António Pina, escrito no contexto de uma elegia dedicada aos cuidados prestados a Eugénio de Andrade no final da sua vida. Um poema triste, mas muito belo.

A Hora do Lanche

Na mão da Ana o iogurte não
iluminava, escurecia,
comunhão ajoelhada
no fundo do coração do dia

imemorial onde, desperto, ele dormia.
O movimento da colher embalava-o
como uma música que quase se ouvia
neste mundo ou como o colo que o adormecia.

A tarde declinava, as sombras,
como sombras, alongavam-se na almofada;
tudo fazia um sentido
literal e simples, onde não pode a poesia.


Se alguma coisa ficara
por dizer já não iria ser dita;
as palavras tinham-se sumido, transidas,
no interior da casa, o próprio silêncio emudecera.

Senhor, permite que adormeçamos
antes que feches a luz e desça
sobre nós a tua escuridão,
que os rebanhos estejam recolhidos
e os credores se tenham afastado da nossa porta,
mas que tenhamos pago as dívidas aos que nos serviram
e aos que nos amaram e aos que nos esperaram;
as tuas grandes mãos sustentarão o telhado e as paredes,
e moerão o grão e fermentarão o trigo,
apaga com as tuas mãos para sempre o rasto
da nossa vida
e que repousemos enfim
sem motivo para nos culparmos
por não termos sido felizes.


Foz do Douro, 26 de Janeiro de 2005
Manuel António Pina

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