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sexta-feira, 8 de junho de 2012

“O Teu Rosto Será o Último”, revisitado

A leitura do livro “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro, deixou-me, no final, uma sensação um tanto estranha. Donde, a necessidade de revisitar o livro. O intuito, porventura condenado ao falhanço, é tentar descobrir um fio condutor entre as várias personagens e encontrar um fim plausível para as histórias deixadas dependuradas.

A história principal é simples, é a história das três gerações de uma família.

Duarte é o personagem principal da narrativa, que muitos garantiam que ia ser o maior beethoviano do seu tempo. Vivia com os pais em Queluz, melhor (preciso eu) numa freguesia com nome de monte e de um profeta. Um dia, não quis tocar mais, ninguém entendendo porque o fez.

António Mendes, o pai, que acordava todas as noites aos berros, a pensar que está a ser atacado por pretos no meio do mato e engole quarenta comprimidos por dia só para se conseguir lembrar o nome do filho. Um dia, suicida-se com a pistola do seu pai.

Dona Paula, a mãe, que o filho não percebia como é que ela, uma beata, era capaz de torcer pela União Soviética, num jogo de futebol contra a Holanda. Um dia, disse ao marido e ao filho: «Tenho um cancro», encostando a mão ao seio esquerdo. Depois disse ainda: «Vou ser operada na segunda-feira, amanhã dou entrada no hospital» E mais disse: «A despensa está cheia, fiz bacalhau com natas, que está no congelador, e uma panela de sopa».

Augusto Mendes, o avô paterno, médico, que um dia vem do Norte para se instalar numa pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul. Um dia, em que se preparava para ver passar - na aldeia donde até as cobras fogem - a Volta a Portugal em bicicleta, caiu inanimado no chão. Passado algum tempo, não obstante os cuidados da mulher, morreu.

Dona Laura, a avó materna, era a única rapariga da aldeia com a terceira classe. Começou por limpar a casa e o consultório do doutor Augusto Mendes. Até que, um dia, o doutor Augusto Mendes disse, Laura, acho que devíamos casar. Dona Laura, parece, ainda vive na aldeia. Um dia que lá passar, vou perguntar por ela.

Os avós maternos não se sabem os nomes. Estes eram de Lisboa. O avô era do “contra”, participou na campanha do Humberto Delgado. Um dia, depois do jantar, foi levado para o António Maria Cardoso. No dia seguinte, bateram à posta de casa, alguém veio anunciar que ele tinha morrido. A avó morreu atropelada por um eléctrico na Rua do Alecrim, enquanto a filha a esperava, sentada a uma mesa dum café ali perto.


Há, depois, as outras histórias que se cruzam com a história principal, onde orbitam personagens, cujas ligações não são fáceis de entender.

Celestino chega à aldeia que tem nome de mamífero, quarenta anos antes do 25 de Abril de 1974. Neste dia, é assassinado, exactamente à mesma hora que Marcelo Caetano se rende no Largo do Carmo.

Policarpo é o amigo do Dr. Augusto Mendes. É quem lhe vende a casa na aldeia que tem nome de mamífero. Parte para a Europa numa altura em que o professor de Coimbra estava a começar a carreira. Prometeu, e cumpriu, ir remetendo cartas a dar notícias. O avô de Duarte foi sempre lendo ao neto todas as cartas recebidas do seu amigo Policarpo, à excepção a carta de 1975, se calhar, ou talvez por isso, por se encontrar incompleta. Mais tarde, foi viver para Buenos Aires, onde veio a morrer.

Alcino era barbeiro no salão Playboy, onde o Duarte tinha hábito cortar o cabelo. Antes de começar a cortar o cabelo aos clientes, as mãos do Alcino tremiam como varas verdes. Mas Duarte acreditava que o barbeiro Alcino era, provavelmente, o único barbeiro do mundo a proporcionar aos seus clientes a sensação de terem sobrevivido a um desastre. Como certas pinturas que nos comovem, não pelas suas qualidades estéticas, mas por sabermos, de antemão, que foram pintadas por crianças sem braços…

A professora de canto (nome?) tinha umas mamas e um rabo que faziam lembrar certos madrigais de Monteverdi. Um dia, Duarte, ao tocar o Prelúdio BWW 867, em Si bemol menor, caiu sobre o piano. Acudiu-lhe a professora de piano…uma sorte para Duarte.

O médico (nome?), que gostava de Bach, usava, no dedo mindinho, da mão esquerda, um anel de ouro que tinha gravadas, em estilo gótico, as letras H e C. O Duarte saiu do consultório, com uma caterva de exames para fazer. O médico passou todo o fim de semana sem sair de casa. Não recebeu qualquer visita, nem atendeu o telefone.

O professor de piano (nome?), tinha um pai (nome?) que se apaixonou pelas pinturas de Bruegel. O filho conta a história do pai: Um dia, o pai professor, ao entrar na sala do Museu de História de Arte, em Viena, onde se encontrava o quadro de Bruegel, deparou-se com uma mulher que acabara de colocar um a tela ainda em branco. Uns dias depois, assombrou-se: o rosto da mulher pintada era igual ao rosto da pintora, por sua vez igual ao do quadro do Bruegel. Era um autorretrato. A pintora tinha-se encontrado a si própria, já que, como no quadro, tinha uma perna mutilada. Um dia, a mulher da tela desapareceu sem deixar rasto. Na iminência de uma nova Guerra, regressaram a Portugal. O pai morreu e foi enterrado no cemitério de Vila Viçosa.

Numa manhã, o professor de piano, depois de recordar história do pai enquanto fazia a barba, saiu de casa e, na rua, apanhou um táxi: “Queluz, por favor”. Consigo levava um embrulho. O destino foi a casa de Duarte. Em casa só estava a mãe. Explicou-lhe que dentro do embrulho estava um quadro. E contou-lhe a história do quadro. Já muitos anos de o pai ter morrido, o encontrou num quarto de um hotel em Buenos Aires.”Quero dá-lo ao seu filho” e explicou: “Pelos momentos em que o ouvi tocar Mozart, Beethoven, Bach…” e disse ainda “que pena ele ter desistido” E acrescentou: “mas acho que o quadro me deu a resposta para a desistência do seu filho”. O Duarte desistiu precisamente no momento em que estava prestes a tornar-se igual à música que tocava…

Dias mais tarde, ao pendurar o quadro na parede, Duarte reparou: Wien, 3/8/1924 e, ainda, num canto, as iniciais HC. Nesse preciso momento, Duarte lembrou-se de duas coisas: primeira, o anel que o médico que usava no dedo mindinho e que tinha gravado as iniciais HC; segunda, a carta de Policarpo de 1975, que o avô nunca lhe lera e lhe faltavam as últimas folhas.

Artur Monteiro, soldado em África, depois inspector, para quem o pai de Duarte foi a pessoa mais extraordinária que conheceu em toda a vida. Ao ver o quadro, o inspector Monteiro deu-se conta que aquele rosto assustado lhe recordava alguém. Alguém de cujo nome já não se lembrava…Quando chegou a casa, o soldado Monteiro perguntou-se como é que poderíamos esquecer tudo acerca de uma pessoa e, no entanto, lembrarmo-nos do seu rosto até ao ínfimo detalhe.

Na carta de 1975, escrita em Buenos Aires, que lhe faltavam as últimas páginas, Policarpo diz algumas coisas que era suposto ajudar a desenrolar o novelo: a importância que atribui à morte de Celestino; Antes da II Grande Guerra estava em Berlim numa data coincidente com a chegada do Celestino à aldeia que tinha nome de mamífero; anuncia que vai apresentar a explicação para o motivo da fuga de Celestino, assim como da sua morte; fala da aquisição do hotel há 6 anos, que se chamava Robert e que veio mais tarde saber que chamava Joseph; fala ainda do hóspede (a mulher da tela) do quarto 302 que veio a morrer uns anos depois; da surpresa do quadro dependurado na parede onde aparecia uma mulher de lenço azul na cabeça que só tinha uma perna e caminhava com ajuda de duas maletas; a constatação de que o rosto da mulher do quadro era igual ao retrato da hóspede, apesar do tempo decorrido; a antologia, em alemão, de poemas de Camões; a velhota, cidadã aparentemente alemã (a mulher da tela?), tinha noventa anos e chamava-se Clawdia e não Hannah, como inicialmente se pensou; há dois meses (já depois do 25 de Abril), chega a Buenos Aires um português, a perguntar por Joseph Castorp (antigo dono do hotel) e que diz que a razão da sua vida àquela cidade são assuntos relacionados com Beethoven; Afinal, Joseph Castorp chama-se Robert Cussler; Este homem chora ao olhar para o quadro da mulher sem perna; o homem vai depois falar do pai, mas, neste altura, as páginas seguintes (as tais que iam dar a explicação para todos os enigmas) desapareceram.

E agora, leitor?. Desenrasca-te. Tenta tu ligar as pontas deixadas no ar…

Confesso que, de palpável, pouco ou nada se consegue. Apenas uma conclusão, com um algum grau de razoabilidade, mas sem relevância para a decifração da narrativa: O homem, que gostava das pinturas de Bruegel, relaciona-se com a mulher da tela. Esse homem, e o seu filho (que nos conta a história do pai) voltam a Portugal. A mulher da tela vai para Buenos Aires. O filho é o professor de piano de Duarte, que vai a Buenos Aires e traz o quadro para o oferecer ao Duarte. O quadro tinha as iniciais HC (de Hannah e de Clawdia?). E o médico, que gostava de Bach, também está ligado a este núcleo de pessoas. Se não, como explicar as iniciais HC no anel que ele usava no dedo mindinho. O que quer ainda dizer que este anel devia pertencer à mulher da tela. É só. Uma mão cheia de nada.

Permanecem as principais dúvidas (porque morreu Celestino? Porque é que Duarte achava que o Índio viria a ser um grande artista? Porque é que o barbeiro Alcino tremia das mãos? Porque é que o médico conhecia Bach como as suas mãos? Quem era a mulher do museu? Porque é que Duarte deixa de tocar piano? Quem é HC, no anel do médico?).

Mas valerá mesmo a pena tentar ligar os fios do novelo? Há histórias assim. Nem todas histórias têm necessariamente que ter um fim. A nossa vida também é assim, incompleta.

No final, só um enigma eu consegui decifrar. A pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, virada a sul…ORCA.

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