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quarta-feira, 14 de março de 2018

Epitalâmio Litoral 

Este foi o mar que teve a cor de jasmins desmaiados na
manhã do poema. Separei as suas pétalas, onda a onda, até
encontrar o centro da divisão: um núcleo de pólen sugado
pelas abelhas, ávidas do seu sabor de sílabas doces. Colei-me
às suas asas, para também eu beber essa poeira húmida
de sexo, que o vento espalha na praia onde um deus
morto deu à costa. Juntei-me à multidão de pescadores
que o rodearam, furando-lhe a pele ácida com as suas
canas; e espreitei-lhe a boca, onde se viam
ainda as feridas do anzol. O seu cheiro
atraía as aves e os cães, e segui os homens descalços até
à taberna onde se sentaram, limpando a planta dos pés do
líquen divino que se lhes agarrava, bebendo aguardente
para esquecerem as manchas que se espalhavam pelos
seus corpos, como doença de que o álcool os não
curava. Outrora, tinham sabido as orações rituais, e
a sua língua servia-lhes de mezinha contra o silêncio
que escorria por entre as constelações, quando olhavam
o céu e se lembravam desse deus que se prendera
às sus redes. Mas a refeição não os deixava pensar;
e comiam com as mãos, para não perder tempo, espreitando
o horizonte em busca de um sinal, para se levantarem
e correrem para o cais. Quantos dias passaram, sem que nada
aparecesse, ou quando surgia algo, logo se dissipava,
como sombra, ou miragem, ou simples refracção de luz
sob a palma da mão que lhes servia de óculo. Um grito nascia-lhes
dessa infecção que os roía por dentro e lhes comia a pele
da alma, até ao interior do ser. Punham-se de pé, subiam para
cima da mesa, e tentavam ver ainda mais longe, como se
o seu sonho pudesse contaminar os limites da Terra. “ A que
Deus roubaste esse grito?” perguntava-me a mulher. E eles
fugiam-lhe, deixando-me só com ela, ao balcão, para que
eu suportasse sozinho o seu olhar manchado pela solidão
das noites. Eu puxava-lhe as pálpebras para cima, como se
abrisse a flor inicial, e descobria nas formas dessas manchas
um continente iluminado pelo desejo. A minha boca colava-se
aos seus lábios, e nesse extremo da descoberta eu via os
seus olhos fecharem-se, deixando-me na terra de ninguém,
às portas do país que nunca habitarei. “ porque ficaste
comigo?” pergunta-me ela. E eu deixo-a, sem lhe responder,
vendo o tempo passar no espelho dos rios, como um pássaro
que se perdeu nas últimas migrações, e procura o rumo. Levo
comigo a sua imagem, e todas as noites, ao adormecer, ela
sai de dentro da minha cabeça, e junta-se a todas essas que
fazem parte do ossuário de memórias que inundo com o
incenso da melancolia, para que regressem à vida. No entanto
a sombra da árvore , entrando pela janela, estende-se sobre
todo o quarto, e um ruído de vento limpa-me o espírito,
deixando-me vazio como as grandes colinas da noite, onde
as vinhas estéreis prosseguem o seu trabalho, semeando
nas valas da treva o sémen da sua lepra. Hei-de beber
esse licor amargo, até chegar ao sabor de rosas que só
se encontra no fim do copo, por entre as borras da bebida;
e cuspirei um perfume nupcial sobre a mesa do amor, onde
a mulher continua sentada, à minha espera, para me ensinar
a vida com o seu gesto de névoa.

Nuno Júdice│ As coisas mais simples

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