(Trata-se de um texto adapatado e que tem por fonte a Visita Guiada da RTP 2, em 2015, ao Estúdio de Fotografia Carlos Relvas, na Golegã)
O genial Carlos Relvas (assim começa a Visita Guiada) foi um rico lavrador, criador de cavalos, toureiro amador, exímio atirador, inventor, músico, ele, aliás, distinguiu-se em muitos e variados campos.
Mas foi na Fotografia que ele se celebrizou internacionalmente,
- no que fotografou,
- no que investigou,
- no que investiu na arte fotográfica do século XIX.
Estamos na Quinta do Outeiro, Golegã, Ribatejo. Aqui, mandou o seu antigo proprietário, Carlos Relvas, construir este Estúdio de Fotografia, único no Mundo. Corria o ano de 1872. A Casa Estúdio de Carlos Relvas na Golegã é um testemunho exemplar do melhor do espírito do seu tempo, um fascínio pelas novidades tecnológicas, a combinação entre Arte e Ciência, e uma imensa curiosidade por tudo.
Não sendo a maior, nem a mais antiga, o que torna, afinal, esta Casa-Estúdio de Fotografia única no Mundo? O que a diferencia de todas as outras é o facto de estar preservada, o que é excepcional, a maior parte dos estúdios oitocentistas desapareceram. Outro aspecto que a torna excepcional, é o facto de ela ser uma casa que foi construída com um dispêndio enorme, com tudo o que havia de melhor, com o maior luxo, que era permitido na época. E, ainda, o facto de ela ter sido concebida, embora de acordo com os princípios e com as regras que eram adequadas aos estúdios fotográficos, o desenho em si é um desenho próprio, é concebido pelo Carlos Relvas e pelo arquitecto que o assistiu, Henrique Carlos Afonso, e é, no fundo, um desenho que não é comum.
De resto, tornou-se um objecto de referência, já à época, do livro que falava do que devia ser um estúdio fotográfico (Traite Pratique de Phototypie-Paris), já publicado posteriormente à sua construção.
Na fachada do edifício estão os pais da fotografia. As duas referências mais importantes e mais divulgadas daquilo que se convencionou chamar a invenção da fotografia. Não se pode dizer que a fotografia tenha sido inventada, é um processo longo, que vem pelo menos desde a Renascença, o conhecimento da câmara escura, o uso da câmara óptica, depois o conhecimento da sensibilidade de determinados produtos, determinados sais à luz, e, finalmente, o que acontece no século XIX, não só por aquelas 2 figuras, mas por outras pessoas, o desejo enorme, a vontade enorme de conseguir, de fixar uma imagem, tal como eles a viam nas câmaras escuras e, no fundo, o que acontece no século XIX, não é só isso mas no essencial aquilo que se chama a invenção da fotografia é a descoberta da forma de fixar a imagem. E estas duas figuras foram fundamentais nesse processo.
Primeiro, Niépce (1765-1833) começou com uma série de investigações nesse campo
e, depois, Daguerre (1787-1851)
que era um pintor, acabou por se associar ao Niépce e mais tarde, já depois da morte do Niépce, apresentou em 1839, na Academia de Ciências de Paris, o processo do daguerrotipo, que é uma técnica, que depois foi descontinuada, mas que, no fundo, é uma das primeiras formas de fotografia. Assim podemos dizer que, para Carlos Relvas, Niépce e Daguerre são os seus tutores, as referências imediatas, são as suas figuras tutelares.
O edifício começou a ser construído em cerca de 1871 – 1872 e a construção durou até 1875 e, durante esse período, a arquitectura dominante, dita erudita, é uma arquitectura ecléctica que vai buscar referências às arquitecturas históricas, de várias origens, que as assimila num só desenho. Temos aqui referências de vária ordem, dominantemente referências ao estilo gótico, sendo que este neogótico remete para o Mosteiro da Batalha. De facto é uma referência bem possível porque o Carlos Relvas fotografou intensamente o Mosteiro da Batalha. Foi um dos trabalhos que ele expôs e tiveram notoriedade no início do seu percurso fotográfico. As referências ao Gótico são bastante pertinentes aqui e fazem sentido. Há também uma dimensão ideológica forçosamente nisto, um nacionalismo (talvez excessivo), um grande amor à coisa portuguesa, parece que sim. Estamos num período romântico em que há uma revalorização dos valores nacionais, dos monumentos, que estavam alguns arruinados, outros em mau estado de conservação, e há essa preocupação de criar, não só de recuperar a História, ao nível da Literatura, a vários níveis. Também ao nível da fotografia há a preocupação de criar um corte monumental que reúna imagens desses edifícios e que os preserve de certa forma e que isso constitua um corte que possa afirmar Portugal com um passado histórico notável no contexto europeu. No fundo, a jovem fotografia ao serviço da inventariação dos objectos mais identitários do nosso património. Á semelhança do que aconteceu já em França e noutros países também.
Realmente, para além dessas referências ao gótico, estas estruturas neogóticas da Casa, há também umas decorações intensíssimas, mas muito misturadas mais uma vez. Efectivamente, há uma mistura de referências de uma gramática decorativa muito alargada que nesse período se usava. Portanto, havia uma gramática nova com a qual se construía um projecto novo. O gótico, no fundo o que faz é, por exemplo nas igrejas, desmaterializar o edifício e reduzi-la à sua estrutura. No caso da Batalha e de outros edifícios góticos são estruturas de pedra, aqui é uma estrutura de ferro, ideal para um edifício que se quer um edifício de luz, um edifício onde a luz entra quase por completo, que é desmaterializado, a arte que corresponde ao estúdio, ao atelier onde as pessoas eram retratadas.
É uma característica deste período do séc. XIX, uma arquitectura de ferro, o desenvolvimento da engenharia, das grandes engenharias, das pontes, dos caminhos-de-ferro, é uma época em que a arquitectura de ferro se desenvolve muito. Esta estrutura foi feita no Porto, nos mesmos estaleiros que estavam a fazer a ponte para o Rio Douro, foi feita numa fundição do Douro, dizem que são 33 toneladas de ferro, possivelmente vindas de Glasgow, mas a fundição nos moldes foi feita no Porto e foi toda da trazida do Porto para aqui. O investimento nesta casa neste edifício é de facto extraordinário.
Mas, a verdadeira surpresa está lá dentro.
Era aqui no rés do chão que as pessoas, que vinham visitar Carlos Relvas, ou ser fotografadas por ele, aguardavam antes de subir até ao estúdio, no piso superior. Uma catedral de luz. Podemos até perguntar qual a necessidade de tanta luz num espaço de um estudo fotográfico? Acontecia que no séc. XIX, e sobretudo no início, as emoções fotográficas eram muito pouco sensíveis e portanto exigia-se tempos de exposição longos. Daí, a necessidade de luz, quanto mais luz, melhor. Mas essa luz tinha que ser controlada. E, de facto, o que acontecia era que a maior parte dos estúdios fotográficos tinham envidraçados, maiores ou menores, de preferência virados a Norte por causa da luz difusa, para não criarem sombras e marcas nas pessoas.
Neste caso, temos envidraçados a Norte e a Sul e por cima, um banho de luz que permitia, com cortinas interiores, controlar a entrada de luz que se queria. Havia 2 formas de controlar a entrada de luz. A luz lateral era controlada com a abertura e fechamento destas cortinas e a luz superior era controlada com um sistema de roldanas que permitia subir ou baixar, o que era o mais avançado à época, o último quartel do séc. XIX. A fotografia tinha sido inventada há 40 anos. Impressiona o que Carlos Relvas investiu, de inteligência, de conhecimento e de dinheiro para fazer uma coisa destas. De facto conseguiu fazer uma obra extraordinária, extraordinária mesmo a nível internacional.
Podemos perguntar como é que uma pessoa que vivia na Golegã tinha acesso a esta informação toda ou à informação que lhe permitiu fazer tudo isto e fazer fotografia pela forma que o fez. De facto, cá em Portugal, nestas principais cidades, no Porto, Coimbra e Lisboa, era relativamente fácil assinar todas as revistas, encomendar livros que vinham de Paris. As pessoas viajavam mais do que nós pensamos. Portanto, ele era uma pessoa que assinava todas as revistas de fotografia, comprava livros, portanto, estava informadíssimo, viajava, o contacto com a Europa era um contacto muito próximo. E, a partir de certa altura, com os seus pares, os fotógrafos, que também faziam experiências, ele estava extremamente actualizado e estudou tudo o que estava ao seu alcance para fazer o melhor, há aqui uma ânsia clara de perfeição naquilo em que ele se empenhou, empenhou-se em várias coisas, neste caso, na fotografia.
Foi também um fotógrafo, ele próprio, muitíssimo bom, multiplamente premiado pelo Mundo inteiro, Filadélfia, Amesterdão, Madrid, Paris, por toda a parte recebeu prémios, em muitos casos medalhas de ouro. O que distingue a fotografia de Carlos Relvas numa época em que são tantas as experiências e tão bons os fotógrafos? Numa fase inicial, pensa-se que o que o distingue é a qualidade com a que ele a pratica, porque a fotografia inicial dele está muito ligada, como é natural, a uma fotografia de retrato. Com toda esta parafernália de objectos, que são adereços para compor cenários e, também, com uma outra função que era imobilizar as pessoas por causa dos tempos longos de exposição. As pessoas, ou apoiavam a mão na mesa, ou na cadeira, ou estavam sentadas. Havia mesmo suportes para encostar a cabeça, para encostar o corpo, para as pessoas não se mexeram enquanto durava o tempo da fotografia, esta podia levar segundos que fazia com que cada movimento, qualquer piscar de olhos, a fotografia podia não ficar bem, ficar tremida a imagem.
Numa fase quase inicial, o início dos anos 40, havia fotógrafos que anunciavam, como sendo um tempo muito curto de exposição, cerca de 10 segundos. É, portanto, uma revolução tecnológica, porque havia fotografias, mesmo no início, que às vezes precisavam de minutos de exposição. Nesta altura, a fotografia e a pintura interrogam-se mutuamente e contaminam-se mutuamente e, inclusivamente, o Daguerre era pintor e há outras pessoas, muito ligadas à fotografia no período inicial que eram pintores e que começaram a fazer fotografia. Havia, inclusivamente, uma rivalidade entre eles ao início.
E em que fase é que o Carlos Relvas se interessa e entra no mundo da fotografia? Não se sabe ao certo quando e com quem ele aprendeu, embora haja uma referência que diz que ele aprendeu com um fotógrafo bastante conhecido que é o Wenceslau Cifra, que era uma figura próxima do Rei D. Fernando II e que veio com ele da Boémia e que terá aprendido provavelmente em Lisboa. Aponta-se mais ou menos a fase de início da actividade dele ou da aprendizagem dele para meados dos anos 50.
E começa muito por fotografar a família neste ambiente, que é um ambiente de estúdio convencional, e isso era normal entra os fotógrafos amadores, eles fazerem uma fotografia que era muito semelhante, sendo amadores não faziam uma fotografia diferente, faziam a fotografia que seguia as normas da fotografia de retrato comercial e, a partir de uma dada altura, ele começa a tentar descolar dos modelos comerciais e convencionados e começa a aderir a uma fotografia que começa a desenhar corpo entre os amadores, amadores no sentido restrito da palavra, aqueles que amam a fotografia, neste caso. Os que faziam a fotografia, como amadores, era, como aqueles que faziam com prazer, tinham obviamente um conforto financeiro, social, que lhes permitia experiências. A fotografia não era nada económica, e vendia-se cara.
Há épocas em que um retrato, já não nos anos 60 mas antes, em que uma fotografia podia custar o equivalente a um salário mensal de um trabalhador, não era barata de todo. Era uma coisa que se fazia uma vez na vida. E quem fazia. Era um retrato para ficar, para ficar em memória a cara daquela pessoa, da figura daquela pessoa. Só a partir dos anos 60 é que há, com a evolução técnica da fotografia, uma redução significativa dos preços e aí já se torna acessível a uma classe média, a uma faixa mais ampla da população. Até lá, não.
Os primeiros clientes eram clientes de elite, na metade dos anos 70 e nos anos 80 é que de facto há uma aproximação a uma linguagem completamente diferente da fotografia, muito mais interpretativa, muito mais próxima de uma tradição decompositiva da pintura. Não é uma exclusividade de Carlos Relvas, mas ele fá-lo muito bem, fá-lo com muita qualidade, há trabalhos dele mesmo, sobretudo trabalhos de paisagens que me parecem inovadores e em Carlos Relvas nós encontramos fotografias em que são os momentos de contemplação da paisagem e em que não há figuras humanas, não há edifícios. Isso parece inovador no trabalho dele e parece especial, um bocado anterior à sua época.
Dentro dos retratados há de facto uma variedade sociológica que também é surpreendente, ele fotografa literalmente reis e mendigos. Ele fotografou o Rei D. Luís I e a Rainha D. Maria Pia, que vieram aqui à Golegã, em 1872 e 1877, fotografou pessoas das suas relações, amigos, família e fotografou pessoas que visitavam o atelier e fotografou também pessoas do campo, da aldeia, há retratos especificamente de mendigos. E autofotografou-se.
E, claro, tudo isto exigia muito dinheiro. Aliás, a certa altura, Carlos Relvas perdeu o controlo, perdeu a cabeça com esta paixão pela fotografia, ao ponto de pôr em risco o seu património, a sua fortuna. José Relvas, seu filho, teve de assumir a condução da casa agrícola, porque isto não estava a correr bem. Ele perdeu-se no meio da sua paixão.
Também é uma característica singular de Carlos Relvas é ele ter feito tanta fotografia. Não era normal um amador ter uma produção tão grande. No arquivo existem cerca de 11.000 chapas negativas, conservadas, o que é uma produção extraordinária, sobretudo para um amador. Que um fotógrafo profissional tenha milhares de chapas é normal, mas um amador já não é normal. Há, portanto, aqui um investimento enorme, uma dedicação enorme à fotografia, durante muito tempo.
E sempre uma relação constante com o estrangeiro, encomendando aquilo que havia de melhor, aquilo que era mais recente, e, depois, dar a conhecer a sua fotografia. Soube desde muito cedo projectar o seu trabalho, não só em exposições em Portugal, como em exposições europeias e, ainda, norte-americanas (Filadélfia), prémios por toda a Europa. Esta casa esta cheia de diplomas e prémios que ele recebeu. Portanto, era uma pessoa que, na época, era extremamente reconhecido, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Não obstante ficar muito dispendioso este amor pela fotografia ou a prática desta arte no séc. XIX, Carlos Relvas nunca recebeu um tostão de nenhum dos seus fotografados. Surpreendente, mostra que ele só gastou com a fotografia, que só investiu. Houve alguns fotógrafos amadores que também vendiam fotografias, comercializavam, punham-nas em locais de venda, mas em relação a Carlos Relvas não há notícia de que alguma vez ele tenha feito isso.
Durante a sua vida de fotógrafo, muitos processos foram sendo experimentados, tratados e desenvolvidos, ele próprio acabou por trabalhar com diversos processos como suporte da sua arte fotográfica. Os principais foram o colódio húmido, depois o colódio seco, e, finalmente, as emulsões de gelatina. O mais trabalhoso era o colódio húmido que era um processo que implicava uma revelação quase imediata, antes que o colódio secasse, pois qualquer deslocação implicava transportar consigo o laboratório com todo o material associado à revelação.
Nesta casa estão construídos, desde o início, os estúdios, os quartos-escuros, os laboratórios, necessários e adaptáveis a todas essas fases tecnológicas da fotografia, mas para que todo o processo ficasse concluído, ele fazia isto tudo sozinho? Parece que não. E, em 1868 contratou um fotógrafo de Lisboa, um fotógrafo profissional, que veio para a Golegã e que o acompanhou durante quase toda a sua vida com fotografo amador. Chamava-se Augusto dos Santos Fonseca, que faleceu na Golegã, é uma pessoa que o acompanhou toda a vida, praticamente, nessa tarefa. Os trabalhos mais mecânicos seriam feitos pelo Augusto dos Santos Fonseca e o Carlos Relvas mais na tomada de vistas, no acto de fotografar (Fim da Visita Guiada).
Carlos Relvas nasceu na Golegã em 13 de Novembro de 1838, onde veio a morrer em 23 de Janeiro de 1894, devido a uma septicemia após um acidente de cavalo.
Um dia, o Rei D. Carlos visitou-o na sua terra, a Golegã, e ofereceu-lhe o título de Visconde, mas Carlos Relvas, ao fim de 2 horas, muito respeitosamente, devolveu o título a sua Magestade. Perante a perplexidade do Rei, apenas disse: Os Relvas têm os seus pergaminhos, valem por si. Foi Visconde durante duas horas apenas.
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