E aquele colarinho de goma não engana...
[…] Veio pois aquela manhã, quase no fim do Verão, em que meu pai me levou a casa do Sr. Rodrigo. Até aí, eu só tirara retratos no dia do meu aniversário. Meu pai escrevia a data na parte de trás; dava um à avó, outro aos meus padrinhos, e guardava os restantes. Às vezes, mostrava-os às visitas. Eram todos eu, desde a idade dos cueiros até ao horrível colarinho de goma (sublinhado meu), tirado no ano anterior. Em nenhum havia nada de especial: apenas a cara que eu tinha quando os tirei.
Agora, ia para Beja, para longe da família; meu pai já me tinha dito várias vezes que a minha vida ia levar uma grande volta, que estava um homenzinho e tinha de proceder de outro modo: passar a ter juízo.
Ter juízo! Naquele mesmo instante, rua fora, me ia repetindo tais palavras. Claro que eu não caminhava com o à-vontade do costume; o fato vincado e a gola dura em volta do pescoço faziam-me caminhar contrafeito. Tinha de conservar o tronco hirto, de modo a adaptar o corpo à solenidade do vestuário.
- Pai... - murmurei eu - lá em Beja tenho de andar sempre assim?
- Pois claro que tens!
Pensei ainda repetir a pergunta de modo a saber se, além de andar daquela maneira, teria que vestir sempre aquele fato. Mas achei inútil. Pois não ia eu para o liceu, não ia eu tirar o retrato para que gente estranha visse bem se era eu ou não o tal que já era um homenzinho e estava em Beja, distante de tudo que me era querido, e cheio de juízo? […]
Manuel da Fonseca │O conto "O Retrato", de "O Fogo e as Cinzas"
Sem comentários:
Enviar um comentário