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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ascendência fundanense de Pessoa

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(...) estudar a ascendência pessoana é bem mais do que satisfazer uma curiosidade mundana ou bairrista – é perseguir pistas para o entendimento de um homem e de uma obra que hoje interessa a todo o mundo culto. De resto ninguém se atreverá a negar a importância por Pessoa concedida à hereditariedade, que invocou em diversas ocasiões para melhor se auto-analisar e se auto-definir. E sabe-se como ele próprio se esmerou a pintar o seu trisavô, e como ele próprio evidenciou o conhecimento da sua “ascendência geral – misto de fidalgos e judeus”.
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Hoje parece estar já suficientemente esclarecida a genealogia pessoana pelo lado materno, açoriano, dos “Nogueira” e dos “Pinheiro” – que segundo Gaspar Simões teria dado a Pessoa “o orgulho das fontes, a quietude das origens, a vanglória do passado” e segundo António Quadros lhe teria “transmitido a herança de solitude insulana e de paixão do mar e da viagem”. Mas continua a saber-se muito pouco da ascendência paterna, mau grado as referências frequentes à avó Dionísia, que enlouqueceu, e ao trisavô José António Pereira de Araújo e Sousa, o do brasão, que foi capitão de artilharia no Algarve, e que era neto e bisneto de capitães-mores, de procuradores régios e de juízes feitores.
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Curiosamente nem a avó Dionísia nem o capitão Araújo e Sousa eram “Pessoa”. Mas era “Pessoa” o marido da avó Dionísia, Joaquim António de Araújo Pessoa, que “faleceu no posto de general”, e que, neto pelo lado materno do capitão Araújo e Sousa, pelo lado paterno descendia dos “Pessoa” do Fundão.
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João Gaspar Simões referiu-se na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa ao “mais remoto ascendente” (sic) paterno de Pessoa, Sancho Pessoa da Gama, que deu como “tetravô” do poeta, quando na realidade este era “quinto neto” daquele (Gaspar Simões também deu o capitão Araújo e Sousa como “tetravô” de Pessoa, quando era seu trisavô). De acordo com o mesmo Gaspar Simões, Sancho nascera em Montemor-o-Velho, mas mudara--se para o Fundão, onde casou em terceiras núpcias com uma fundanense, de quem teve um filho fundanense; e “cristão-novo que era”, dele “herdara” Fernando Pessoa o “nariz judaico e aquela inquietação de modos e feitio /.../ a que se aliava, aliás, de certo modo, a volubilidade do seu espírito, ou seja, a sua inaptidão a fixar-se fosse ao que fosse”.
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Gaspar Simões não indicou os documentos que usou para estudar a ascendência paterna de Pessoa. Mas Joaquim de Montezuma de Carvalho defendeu num artigo publicado em 1975 no “Comércio do Porto” que ele se fundara inteiramente num documento “arquivado por Pessoa nos seus baús” e que se devia a Mário Saa, investigador, poeta e amigo de Pessoa. Nesse documento, datado de Setembro de 1921, que Montezuma publicou pela primeira vez naquele jornal, e que lhe fora remetido pelo investigador Hubert D. Jennings pode encontrar-se o “processo de génese de Fernando Pessoa” por linha varonil. Por ele se vê que Pessoa era sexto neto de Custódio da Cunha e de Magdalena Pessoa, pais de Sancho Pessoa da Gama, “cristão-novo dos quatro costados, que foi tomado pela Inquisição de Coimbra e condenado em Auto de Fé no ano de 1706”.
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Numa data indeterminada, Sancho Pessoa veio a fixar-se no Fundão, onde em 26 de Setembro de 1697 casou em segundas núpcias com a fundanense e filha de fundanenses Beatriz Rodrigues, e em 20 de Agosto de 1703 casou em terceiras núpcias com a também fundanense e também filha de fundanenses Branca Nunes.
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Deste casamento nasceu, no Fundão, o tetravô de Fernando, Gabriel Tavares Pessoa, que veio a casar com Leocádia Pereira da Silva, natural de Penamacor (como os seus pais, que por certo eram judeus). E dessa união nasceu, em 20 de Janeiro de 1740, também no Fundão, o trisavô do poeta, Gaspar Pessoa e Cunha. O filho deste e de Perpétua Contença, Daniel Pessoa e Cunha – bisavô de Pessoa – já veio a nascer em Serpa, assim como nasceu em Tavira em 1813 o filho deste doutor e da farense Joana Xavier Pereira, Joaquim António de Araújo Pessoa – avô de Pessoa – e assim como nasceu em Lisboa em 28 de Maio de 1850 o filho desse general e de Dionísia Seabra, Joaquim de Seabra Pessoa, o pai do poeta.
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Não foi só no documento publicado por Montezuma de Carvalho que Mário Saa se referiu aos antepassados judeus e fundanenses de Fernando Pessoa. No seu famoso livro A Invasão dos Judeus, acrescenta até outras informações a saber: que Sancho Pessoa deu origem, no Fundão, “aos Pessoa d’Amorim” e “à família do jornalista Alfredo da Cunha”, e que foi “astrólogo, ocultista e psalmista”.
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Estas informações parecem preciosas, sobretudo quando se pensa no interesse que Pessoa sempre demonstrou pelo ocultismo e pela astrologia, e quando se conhece a fortuna de teses levianamente postas a circular por Gaspar Simões: que o pai de Pessoa pertencia a uma “família de militares”, de que no seu gosto pela música e pelas letras era uma excepção – como se o gosto intelectual e artístico de Pessoa lhe viesse quase exclusivamente pelo lado de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira.
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Ora a verdade é que tanto física como psicologicamente é o lado Pessoa que mais se afirma na personalidade do poeta. O próprio Gaspar Simões nota que Pessoa sob quase todos os aspectos “guardava uma inolvidável lembrança física daquele que o gerara”. E Mário Saa foi mais longe ao dizer de Pessoa quando ele ainda era vivo: “nós o vemos fisionomicamente hebreu, com tendências astrológicas e ocultistas, um verdadeiro sacerdote do Talmud, prudente, cauteloso, tímido, dissimulado em intenções, não desmentindo a agitação temerosa que deveria ter presidido àqueles seus antepassados do gheto. /.../ Deste mesmo pavor se ressente todo o seu pensar e literatura. Ele é cheio de pequeninos receios, e ora, pois, de pequeninas ousadias; é tímido, e daí, os arrojos naturais dos tímidos. Lança-se e oculta-se; esconde-se, e prepara novos lances”.
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Estranha ironia – a juntar a tantas que vêm da vida e da obra de Pessoa: se no seu corpo, na sua psique ou na sua produção – como no seu nome literário – se afirmam tão profundamente, tão nitidamente, as marcas dos Pessoas, a família Pessoa foi sempre uma grande ausência na sua vida social. Com o pai mal pôde conviver: a tuberculose separou--os ainda em vida, e ele morreu quando o poeta contava cinco anos. Nesta mesma idade viu Pessoa morrer o seu irmão Jorge, que tinha menos de um ano – pelo que se pode dizer que Pessoa foi filho único não da sua mãe, como o do seu célebre poema, mas do seu pai.
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Ora o pai também já era filho único; e o avô Araújo Pessoa, que não deu tios nem primos ao poeta, talvez nem se tenha cruzado com este (Pessoa ainda conviveu, isso sim, com a mulher dele, que faleceu em 1907 e que, curiosamente, foi acompanhada na sua doença não pelos Pessoa ou pelos Seabra mas pelos parentes de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira, a mãe do poeta). Acresce que os parentes vivos de Pessoa pelo lado paterno não eram só parentes afastados: eram parentes que na sua quase totalidade viveriam afastados de Lisboa. E acresce que Pessoa partiu para a África do Sul logo aos oito anos. Quando em 1901/1902 veio passar férias a Portugal sabemos que visitou os parentes dos Açores, mas não parece ter visitado os parentes continentais de linha varonil. E regressado a Lisboa em 1906 nunca se decidiu a ir visitá-los ou conhecê-los em Tavira (e no Fundão), tornando inúteis os apelos que nesse sentido lhe fazia a mãe.
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Curiosamente, a “mãe” esteve sempre presente na vida e na obra de Pessoa: ela comparece até na primeira quadra que ele compôs e num dos últimos poemas que escreveu, por sinal numa língua não materna, o francês. Mas o pai, ausente da cena de Pessoa, nome que evoca ausências (máscara, “personne”), e em que ecoa o qualificativo “só”, é também uma ausência da sua obra, marcada exactamente por ela tanto no plano literal como no plano simbólico. Se o corpo e a psique de Pessoa remetiam tão directamente para os Pessoa ausentes, também a sua obra torna a cada instante essa ausência presente. E nem é necessário lembrar o que já outros disseram: que é decerto a falta do pai (ou dos Pessoa) que determina o aparecimento da família heteronímica, da companhia heteronímica.
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Um dia falaremos das minas de volfrâmio que Pessoa pensou comprar e explorar. Mas, depois de tudo o que dissemos, quem duvidará da riqueza que ele soube tirar da mina herdada, funda, do Fundão?
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(Arnaldo Saraiva, Jornal do Fundão, 16.Dezembro.2005)

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