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domingo, 21 de outubro de 2012

Caim segundo José Saramago

A par do Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim é um livro em que Saramago, nos seus trabalhos, aborda a Bíblia, através de uma interpretação irreverente e mordaz.

Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim, José Saramago foca-se no Antigo Testamento, mais concretamente nos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio.

Como o faz?

A meu ver, de uma forma muito engenhosa. Saramago parte de um dado objectivo para depois, a partir dele, desenvolver toda a narrativa. Havia-o feito já, de forma genial, no Ano da Morte de Ricardo Reis (Fernando Pessoa havia dito que Ricardo Reis “vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontâneamente por ser monárquico”, para o José Saramago o fazer desembarcar em Lisboa no último dia de Dezembro de 1935, um mês após a morte do poeta da Mensagem).

Agora, em Caim, o ponto de partida é o episódio bíblico Caim e Abel, que é conhecido, narrado nos primeiros versículos do Génesis. Aliás, “uma história do princípio do mundo”, como já havia dito Sophia no conto O Jantar do Bispo.

E que pretende José Saramago provar com este livro, qual é a sua tese?

Saramago tem o propósito de redimir Caim do assassinato do seu irmão Abel, acusando Deus (o senhor, escrito sempre em minúsculas para Saramago) como autor moral e intelectual do crime, ao desprezar o sacrifício que Caim lhe havia oferecido.

Segue-se então a narrativa, através da qual Saramago vai demonstrar que é verdade o que ele enuncia como problema.

E, em mais um golpe de génio, vai ser o próprio Caim a fazer a sua defesa, estando “presente” em vários episódios bíblicos, para apontar o dedo ao Senhor, chamando-lhe cego (pág 15), soberbo (pág 37), filho da puta (pág 82), ciumento (pág 89), orgulhoso (pág 91), pouco inteligente (101), malvado (pág 106), comissionista (pág 112), fomentador de guerras (pág 112), vingativo (pág 121), parcial (pág 127), pactuante com o diabo (pág 143) e infame (pág 180).

E de que forma o faz?

Na Bíblia, disse o Senhor a Caim “Serás vagabundo e fugitivo sobre a Terra”. Pois Saramago, mais uma vez de uma forma brilhante, recorre ao artifício das mudanças do presente. Caim viaja no tempo, ora está no futuro, ora regressa ao passado.

E é assim que Caim, na sua viagem errática:
- Evita a punhalada de Abraão ao seu filho Isaac;
- Presencia o desacordo linguístico entre vários povos à volta da Torre de Babel;
- Está presente quando o Senhor promete a Abraão que sua mulher Sara vai ter um filho;
- Horroriza-se com a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra;
- Todavia, não chega a tempo de evitar que a mulher de Lot se transforme numa estátua de sal;
- Está no Sinai quando os Israelitas, aproveitando a ausência de Moisés, adoram um bezerro;
- Espanta-se quando lhe contam a história das filhas de Lot, que ficaram grávidas do próprio pai;
- Fica estupefacto com a queda de Jericó;
- Assiste à destruição dos Israelitas na cidade de Ai e ao castigo de um homem chamado Acam, considerado culpado de tal revés;
- Participa na reconquista da cidade de Ai, e, em seguida, olha para Josué que manda enforcar numa árvore o rei desta cidade;
- Não assistiu, porém, ao maior prodígio de todos os tempos, aquele em o Senhor fez parar o Sol, para Josué poder vencer, ainda com a luz do dia, a batalha contra os cinco reis amorreus;
- Testemunha as desgraças que atingem o crente Job, o homem mais justo à face da Terra; e
- Por último, participa na viagem da Arca de Noé, conseguindo, desta vez de forma decisiva e surpreendente, contrariar o projecto do Senhor!

Este final não deixa, porém,  de ser surpreendente. É um final abrupto. Parece que o Saramago tinha pressa em acabar rapidamente o livro. Caim é um livro breve, não tem mais 180 páginas. É talvez o seu mais pequeno romance. Por ser o último?

Saramago achava que Deus devia assumir os males que a narrativa bíblica imputa à desobediência humana e que um bom Deus devia ter impedido.É, no fundo, a sua tese.

Formalmente, estamos perante mais um livro bem resolvido, embora, em minha opinião, longe do Memorial do Convento e, sobretudo, do Ano da Morte de Ricardo Reis. Relativamente ao conteúdo, é claramente um livro discutível. Eduardo Lourenço, na sua extrema bondade, chamou a José Saramago um “teólogo espontâneo”. Ele acha que Saramago “paradoxalmente, necessita daquele Deus em que não crê, como utopicamente se diz…”.

É verdade que Saramago, fazendo inveja a muitos cristãos, nos quais eu me incluo, estudou muito bem a Bíblia. Mas não concordo com ele quando diz que “A Bíblia é um Manual de Maus Costumes”. O seu companheiro de militância política, Bernardino Soares, chefe da bancada comunista do nosso Parlamento, deve-o ter espantado quando naquela casa citou, perante a estupefacção dos outros deputados, um excerto do Levitico:
«Quando o teu irmão empobrecer e as suas forças decaírem, então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo. Não tomarás dele juros, nem ganho; mas do teu deus terás temor, para que o teu irmão viva contigo. Não lhe darás o teu dinheiro, nem darás o teu alimento por interesse» (Levítico / versículo 25).

José, e os livros Eclesiastes e Cântico dos Cânticos, para só citar estes, também se incluem no tal Manual de Maus Costumes?

Saramago construiu uma narrativa que, em parte, se pode considerar um panfleto camuflado em vistosa roupagem de um muito competente profissional de letras.  Saramago, como outros intelectuais e ateus, encara as religiões como uma perigosa fonte de obscurantismo que ameaça a busca da verdade.

Apesar de tudo, eu tenho de confessar que considero Saramago um dos melhores escritores da Língua Portuguesa e que a sua escrita, algo original, me seduz.
 
E, se Deus quiser (quer Saramago queira ou não), vou continuar a ler, ou antes revisitar, a sua escrita (sem mais), cuja beleza é um bálsamo para a minha alma.

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