Coimbra, 28 de Dezembro de 1990 — Visita do pároco de S. Martinho. Telefonou-me a dar as boas festas, adivinhou pelo tom da minha voz o meu estado de saúde, e meteu-se a caminho. Almoçou, bebeu do melhor vinho da garrafeira, e regressou agora, rijo e fero como sempre, depois de uma longa conversa. Meu vizinho de porta, é ele que me olha pelo quintal. Contou-me do acasalamento dos melros que ritualmente fazem ninho na sebe de avelaneiras que nos estrema, da recuperação da eira arruinada de que somos consortes, das páginas que escrevi sobre a nossa escola, que tem sempre na memória, dos enxames novos que acrescentou ao colmeal. Quatro horas de paz bucólica. Da paz rural em que vive e que não lhe invejo, mas gostava de ter merecido também da vida. De todos os da nossa criação é ele o único que me lê. Sobe, de livro na mão, os montes onde caçámos juntos, e saboreia no alto, sem pecar, as minhas heresias. Preguei-lhe neles, incansavelmente, durante anos, a santidade da poesia. E ficou convertido.
Miguel
Torga, in Diário XVI
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