O plano de leituras acordado com os meus amigos do Grupo de Leitura levou-me a revisitar A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco. É um romance escrito em !866, o mesmo ano em que foi publicado o romance Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Nesse ano, Camilo Castelo Branco vivia já em São Miguel de Seide na companhia de Ana Plácido. Politicamente, reinava em Portugal o Rei D. Luís. Estamos em plena regeneração. É o tempo do rotativismo bipartidário. Literariamente, havia eclodido justamente no ano anterior a Questão Coimbrã que opôs Antero e Castilho, produzindo uma grande fractura entre a comunidade literária. Temos até o caso, algo caricato, do duelo, na cidade do Porto, entre Antero e Ramalho Ortigão. Camilo Castelo Branco andou por perto da disputa de confrades, não se envolvendo demasiado. Politicamente, Camilo, quando da revolta da Maria da Fonte, lutou ao lado dos Miguelistas e na escrita sempre demonstrou defender os ideais legitimistas e conservadores.
A Queda dum Anjo é um romance satírico. Descreve-nos a corrupção de Calisto Elói, morgado da Agra de Freimas, do termo de Miranda, quando vem para Lisboa para exercer as funções de deputado. Descreve-nos ainda, de maneira caricatural, a vida social e politica portuguesa. O fidalgo deixa-se corromper pelo luxo e pelo prazer que imperavam em Lisboa. Politicamente, ele há-de transitar do partido Miguelista (conservador), para o Partido Liberal. Foi um parlamentar que se fez notar, ao inicio, pela sua indumentária e pelo seu discurso arcaico. Tinha, contudo, uma oralidade que impressionou. Não admira, ele havia-se exercitado na arte de dizer, qual Demóstenes, nas margens fragosas do Rio Douro.
Enquanto parlamentar, Calisto Elói começou logo por atacar a forma de juramento dos deputados. Depois, reclamou equidade na distribuição territorial dos subsídios para o teatro. “Não vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho os ratinhados cobres das suas economias para regalos da capital, enquanto ele se priva do apresigo de uma sardinha, porque não tem uma pojeia com que comprá-la”, exclamou Calisto perante a as risadas de vários sujeitos. O seu grande adversário de debate parlamentar foi o Dr. Libório de Meireles, cara honesta e posturas contemplativas. Com ele discutiu acesamente a reforma das prisões. Eram debates inflamados que enchiam as galerias da Câmara, sobretudo de damas ilustradas, atraídas pelo renome do deputado de Miranda.
Mas, um dia, o anjo caiu. Há um momento em que o morgado da Agra de Freimas «sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações eléctricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal».
O anjo Calisto vai cair nos braços de Ifigénia Ponce de Leão, com quem acaba por viver maritalmente e de quem tem dois filhos. Um passeio à Europa limpou-lhe do espírito as teias. Começou um doce viver, rodeado dos maiores luxos. Releu o que havia escrito sobre o assunto e ordenou a um criado que queimasse o manuscrito.
E até a esposa, Teodora, ignorante mais que o necessário para ter juízo, o imita sucumbindo ao prazer da modernidade. Abandonada pelo marido, vai também viver maritalmente com seu primo, Lopo de Gamboa, de quem tem um filho.
Com este romance, Camilo pretendeu aproximar-se dos realistas, por sentir, talvez, que estava a ser ultrapassado por outros escritores da época, que percorriam já outros caminhos, deixando para trás o romantismo.
Camilo quis demonstrar como uma pessoa pode ser influenciada pelo meio que a rodeia, mudando completamente a sua maneira de ser. Calisto Elói, aquele santo homem lá das serras, o anjo do Portugal velho, caiu!
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