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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Lisboa, nos passos de Almada Negreiros


A reunião dos peregrinos foi no Miradouro de São Pedro de Alcântara, pelas 10 horas. Dia 10 de Julho do ano de 2014. Hoje, o roteiro segue os passos de Almada Negreiros na cidade de Lisboa. A Susana, da Divisão Cultural da CML, vai guiar-nos nesta peregrinação.

Com o Castelo de São Jorge ao longe, na colina em frente, Susana faz a apresentação de Almada Negreiros, artista multifacetado, que se dedicou fundamentalmente às artes plásticas (desenho, pintura, etc...) e à escrita (romance, poesia, dramaturgia, etc.). A obra de Almada é vasta e reparte-se por áreas muito diversas. 


Feitas a apresentação, penetrámos no coração do Bairro Alto, em direcção ao Hospital de São Luís. Na parede do hospital, uma placa, lá colocada em 2005, a lembrar a última frase escrita pelo poeta Fernando Pessoa, antes de morrer neste Hospital: 

“I Know not what tomorrow will bring”
       (Não sei o que o amanhã trará)

Pessoa morreu neste Hospital no dia 30 de Novembro de 1935. Anos mais tarde, o seu amigo Almada Negreiros há-de morrer neste mesmo Hospital, no dia 15 de Junho de 1970, e no mesmo quarto. No mesmo quarto? Bem, afinal parece haver dúvidas, diz Susana. Se é assim, se não morreram no mesmo quarto, fica a lenda. 


Descemos agora a Rua do Norte em direcção ao Elevador da Bica, novo ponto de encontro. Na nossa frente, dois edifícios que hoje fazem parte do mesmo conjunto arquitectónico, mas foram, noutro tempo, dois palácios: do Calhariz e do Sobral. O Palácio do Sousa Calharizes passou, a partir de 1947, para a posse da CAIXA GERAL DOS DEPÓSITOS. Aqui, Almada Negreiros, em 1921, depois de regressar a Portugal após uma estada pouco feliz em Paris, fez a sua primeira intervenção, a conferência A Invenção do Dia Claro, que marcou uma alteração de atitude da sua parte. É deste tempo o seu poema:

MÃE

Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe passa a tua mão pela cabeça!Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.
Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,

tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa, como a mesa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!


Almada Negreiros, in "A Invenção do Dia Claro"



O Largo do Calhariz fica para trás, vamos agora até ao Chiado, à frente da Brasileira do Chiado. Por iniciativa do jornalista Norberto de Araújo, do Diário de Lisboa, e do arquitecto José Pacheko, director da revista Contemporânea, a decoração da Brasileira do Chiado, em 1924-1925, foi entregue a artistas modernistas. Almada Negreiros executou o primeiro e o terceiro dos painéis decorativos, do lado ocidental do café: duas Banhistas e este Auto-Retrato Num Grupo, sentado em volta de uma das mesas do próprio café.


As quatro figuras representadas neste quadro estão identificadas (da esquerda para a direita): Almada Negreiros, a bailarina e actriz espanhola Júlia de Aguilar, a actriz Aurora Gil, e o Prof. Dória Nazaré. Embora mal recebidos pela maior parte da crítica e dos frequentadores da Brasileira, os novos quadros transformam o café na única «galeria» modernista então existente na capital portuguesa. Hoje, os quadros de Almada podem ser vistos no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.


Estamos agora em frente ao Teatro Municipal de São Luis.Teatro inaugurado em 1894, então com o nome Teatro Dona Amélia. Mais tarde, com a República, passou a chamar-se Teatro da República. Em 1971, a sala acabou por ser comprada pela Câmara Municipal de Lisboa, passando a ter o nome de Teatro Municipal de São Luis.
Foi aqui, no ainda Teatro da República, que Almada, em 1917, realizou a conferência Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX. Foi neste palco, no palco do Teatro da República, que Almada se fotografou nu em poses de herói grego para representar o seu Ultimatum Futurista.


É tempo de ir adiante, até ao largo São Carlos. Parámos mesmo em frente à porta principal do Teatro Nacional São Carlos. O teatro ocupou um lugar central na obra de Almada. Mas, a importância do teatro não se restringiu aos textos, cenografias e figurinos que foi realizando ao longo dos anos. Pode-se dizer que o seu interesse despertou quando viu aqui, neste Teatro, as actuações dos Ballets Russes em Lisboa. Essas impressões estão presentes em desenhos de 1917. 
E é, a partir desse tempo, que Almada colabora em produções de algum amadorismo nas quais é argumentista, coreógrafo, figurinista, director de bailado e, por vezes, bailarino.


Perto, está o Grémio Literário, na Rua Ivens. Vamos até lá. Não entrámos. Ainda não foi desta que eu vi o célebre quadro dos Fundadores. Aqui, Almada apresentou, em 1912, os primeiros trabalhos. Desenhos e caricaturas. Em 1913, realizou-se aqui também uma 2ª Exposição. Pela primeira vez, Almada expõe individualmente. Pessoa fez então uma crítica na revista A Águia. Escreveu: “O Sr. Almada manifesta-se sem se manifestar”. Depois, conheceram-se e ficaram amigos para sempre.


Descemos pela Rua Nova do Almada (não, o nome da rua é uma homenagem a Rui Fernandes de Almada, antigo presidente Senado Municipal que, em 1665, mandou abrir a rua que hoje tem o seu nome) até à Rua Augusta, na Baixa. A meio, situava-se a Alfaiataria Cunha, para quem, em 1913, Almada fez as primeiras pinturas decorativas. Almada havia cancelado a sua matricula na Escola Internacional, na Rua da Emenda, e publicou os primeiros desenhos e caricaturas.


Vamos, agora, em direcção ao rio, até ao café Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço. Lá dentro, está a célebre mesa do poeta Pessoa. Aí, ele conversava com os seus amigos, muitas vezes com o seu amigo Almada. Três dias antes da morte de Pessoa, no dia 27 de Novembro de 1935, os dois encontraram-se neste café, na companhia de João Gaspar Simões. Pessoa está agitado e pigarreia muito, contou mais tarde Gaspar Simões. É a despedida. Os amigos vêem, pela última vez, o poeta da Mensagem.


Em 1917, a escrita interventiva de Almada teve um primeiro ponto alto. Almada reage ao acolhimento negativo à publicação do segundo número da revista Orpheu, e utiliza o conhecido médico e escritor Júlio Dantas como símbolo das posições mais retrógradas. O pretexto imediato é a peça de teatro Soror Mariana Alcoforado deste autor.


Almada Negreiros responde com o seu Manifesto Anti-Dantas, onde escreve com veemência:
"BASTA PUM BASTA! UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D'INDIGENTES, D'INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO! ABAIXO A GERAÇÃO! MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!"
Ora, foi justamente neste café que o chamado Grupo do Orpheu assentou arraiais para ouvir Almada declamar o Manifesto Anti-Dantas, em público, pela primeira vez.

O nosso roteiro chegou ao fim. Há ainda muita obra de Almada para ver, que não coube neste itinerário que durou cerca de duas horas. Obrigado, mestre Almada. Adeus! 

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