"O Cavador", escultura de pedra concebida por António Augusto da Costa Mota (tio, 1862-1930), inaugurada em 1913 no Jardim Guerra Junqueiro (Jardim da Estrela), em Lisboa. Foi a primeira escultura a ser colocada naquele jardim após a implantação da República.
O Cavador
Rouco na treva canta o galo...
— Oh, dor! oh, dor! —
Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,
Miséria negra, vai chamá-lo!...
— Oh, dor! oh, dor! —
Bate-lhe à porta, é teu vassalo,
Que traga a enxada, é teu vassalo,
Fantasma negro, o cavador!
O vento ulula... Tremem ninhos...
Na noite aziaga tremem ninhos...
— Oh, dor! oh, dor! —
A neve cai, fria d'arminhos...
Na escuridão, fria d'arminhos...
— Oh, dor! oh, dor! —
Passa maldito nos caminhos,
D'enxada ao ombro nos caminhos,
Fantasma negro, o cavador!
Vem roxa a estrela d'alvorada...
Vem morta a estrela d'alvorada —
— Oh, dor! oh, dor! —
Montanhas nuas sob a geada!...
Hirtas, de bronze, sob a geada!...
— Oh, dor! oh, dor! —
Torvo, inclinado sobre a enxada,
Rasga as montanhas com a enxada,
Fantasma negro, o cavador!
Cavou, cavou desde que é dia...
Cavou, cavou... Bateu meio-dia...
— Oh, dor! oh, dor! —
De pé na encosta erma e bravia,
Triste na encosta erma e bravia,
— Oh, dor! oh, dor! —
Largando a enxada, «Ave-Maria!...»
Reza em silêncio... «Ave-Maria!...»
Fantasma negro, o cavador!
Cavou, cavou na serra agreste,
D'alva à noitinha, em serra agreste...
— Oh, dor! oh, dor! —
E um caldo em prémio tu lhe deste,
Meu Deus!... seis filhos tu lhe deste...
— Oh, dor! oh, dor! —
Batem trindades... «Pai Celeste!...
Bendito sejas, Pai Celeste!...»
Reza, fantasma, o cavador!
Cavou cem montes... que é do trigo?
Gerou seis bocas... que é do trigo?
— Oh, dor! oh, dor! —
Bateu a Fome ao seu postigo...
Bateu a Morte ao seu postigo...
— Oh, dor! oh, dor! —
«Que a paz de Deus seja comigo!...
Que a paz de Deus seja comigo!...»
Disse, expirando, o cavador!
Guerra Junqueiro, in "Os Simples", Junho 91.
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