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domingo, 10 de novembro de 2013

"O Malhadinhas", o bom selvagem


Não estava nos meus planos ler “O Malhadinhas”, do mestre Aquilino Ribeiro”, o que aconteceu por compromisso com o meu Grupo de Leitura. Nada arrependido, digo desde já. 

Uma história contada na primeira pessoa, em forma de monólogo, e dirigida a um grupo de ouvintes. É o Malhadinhas, em fim de vida, que conta a sua história de vida, recheada de episódios cómicos e repleto de expressões idiomáticas. Penso que foi Miguel Esteves Cardoso que disse que "ler os livros de Aquilino Ribeiro é viver a nossa língua como se tivesse nascido ontem". Para ler Aquilino temos que ter sempre o dicionário por perto. Foi o que fiz, como sempre, aliás.

O livro é escrito num tom coloquial. O Malhadinhas, para quem o pla­neta ia da sua terra até Aveiro, onde com­prava o sal que ven­dia pelas Ter­ras do Demo, conta a sua história de vida como se tivesse perante uma assembleia de gente com prestígio (“meus fidalgos”, diz ele logo na primeira linha).

Acontece, muitas vezes, que o personagem principal do livro é o alter-ego do autor. Penso que não é o caso presente. O autor construiu um personagem que está longe do pensar do mestre Aquilino. 

Aquilino Ribeiro abre aqui um debate social acerca da relativização dos conceitos morais e de civilização, pondo em cima da mesa, ainda que muito discretamente, duas questões: a violação e a violência doméstica.

Malhadinhas enamorou-se de Brízida, “minha prima direita, raparigaça, como poucas, apetecedora de legítima , e de presença, trunfa preta sobre o rosto benza-te Deus, grande cantarina de serões e de romarias, e tão guapa em seu amanho como videira no governinho da casa”. Todavia, o nosso Malhadinhas, com dúvidas do amor da prima, e perante os avanços de um abade novo e galã, rapta a renitente prima e foge pelos campos, em busca do padre amigo que os há-de casar. Uma noite, numa cortinha onde se abrigaram, o Malhadinhas, ali “sem mais testemunhas que Deus do céu, depois de uma breve briga – tinha de ser – da coitanaxa fiz dona”. Já está! Aquilino resolve este assunto em duas penadas. O narrador conta tudo com tanta naturalidade, com tanta justificação, que até uma violação não parece o que é.

Que a minha língua era afiada como a faca que trazia à cinta” era uma verdade, conta Malhadinhas. A língua para amansar as mulheres e os homens que se atravessavam no caminho; a faca para rebater os tratantes que lhe ameaçavam o fagote. Pois, o Duarte era um homem liberal e fala-barato, mas dominado pela Joaquina, a mulher. O remédio foi este avisado conselho: “Eu cá se fosse a ti, ó Duarte, chapa batida, chapa gasta, dava-lhe todos os dias, ao deitar e levantar da cama, uma sova de criar bicho”. Nem mais! O efeito foi tal que a terra, à hora da ceia, foi alvorotada com os gritos da Joaquina. Remédio santo! Duarte passou a ser rei na casa em que só havia mandona. A violência doméstica, assim explicada, até parece uma coisa boa.

Se fosse vivo, que diria o cidadão Aquilino Ribeiro? 

E onde é que decorre esta acção? Passa-se em Vila Nova de Paiva (ajudengado nome, chamou-lhe Aquilino Ribeiro, que no séc. XIX deram à povoação de Barrelas). Em Bar­re­las podemos ver sete maravilhas, conta–nos o Malhadinhas, meio sério, meio a brincar. Ironicamente, uma delas era a ramadura do Bisagra, mais frondosa nem a cabeça do cervo-real. Mas, uma maravilha, de verdade, é a cruz mudé­jar, que ele e o povo atri­buem a um mítico rei visi­gó­tico. Ainda hoje, quem for a Vila Nova de Paiva pode ver esta maravilha.

Mas outra his­tó­ria da terra é a do juiz. O célebre Juiz de Barrelas. O Malhadinhas fala dele só para dizer que é uma das sete maravilhas, mais nada. Mas, já agora, vale a pena conhecer. Já li duas versões. Deixo aqui a mais curta. É assim: Acusado um inocente, contra quem se erguiam falsas mas avultadas provas circunstanciais e impedido de testemunhar em virtude das suas funções, o Juiz de Barrelas com uma notável sentença:

Vi e não vi; sei e não sei; corra a água ao cimo; deite-se o fogo à quei­mada; dê-se o laço em nó que não corre, etc. Por tudo isto e em face da plena pro­vado pro­cesso cons­tante, con­deno o réu na pena de morte, mas dou-lhe cem anos de espera para se arre­pen­der dos seus peca­dos. Cumpra-se. O Juiz de Barrelas”.

Não sei se já disse, deu-me muito gozo ler este livro! 

3 comentários:

  1. A leitura deste livro é um manancial de tanta coisa...uma linguagem que parece sair das entranhas da terra, que com ela se amálgama e que deste modo respira Natureza...humana, animal e ambiental. Como se escreve(ia) tão bem.

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  2. Ahah...é mesmo, minha amiga, a prosa do nosso Aquilino é uma escrita que ressuma a Terra. É um prazer único. Obrigado pelo teu comentário!

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  3. Ler Aquilino Ribeiro, para mim que sou ateu, é quase como uma religião que me faria perder aquela qualidade. Se Raul Brandão se dedicou aos homens do mar, Aquilino tratou como ninguém os homens da serra, nas suas virtudes e nos seus defeitos, ambas de farto sinal. Descreveu-os como são, mas sem os aviltar ou elevar. O seu léxico é único,e a promoção da sua obra uma prioridade a fim de fixar para a memória futuro um mundo desaparecido.O Malhadinhas não é um livro, é um monumento de que honra a nossa literatura!

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