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sábado, 22 de março de 2014

Orca - uma aldeia com nome de mamífero...


A leitura do livro “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro, deixa-me sempre, no final, uma sensação um tanto estranha. Daí, a necessidade de o revisitar, com o intuito (porventura condenado ao insucesso) de tentar descobrir um fio condutor entre as várias personagens e de encontrar um fim plausível para as histórias deixadas dependuradas.

A história principal é simples, é a história das três gerações de uma família, a família Mendes. 

Duarte é o personagem principal da narrativa, que muitos garantiam que ia ser o maior beethoviano do seu tempo. Mas, um dia, não quis tocar mais, ninguém entendendo o porquê.

António Mendes é o pai que acordava todas as noites aos berros, a pensar que estava a ser atacado por pretos no meio do mato e que engole quarenta comprimidos por dia só para se conseguir lembrar do nome do filho. Um dia, suicida-se com a pistola do pai. 

Dona Paula é a mãe, que o filho não percebia como é que ela, uma beata, era capaz de torcer pela União Soviética, num jogo de futebol, em que esta defrontava a Holanda. Um dia, disse ao marido e ao filho: «Tenho um cancro», encostando a mão ao seio esquerdo. E ainda: «Vou ser operada na segunda-feira, amanhã dou entrada no hospital». E ainda: «A despensa está cheia, fiz bacalhau com natas, que está no congelador, e uma panela de sopa».

Augusto Mendes, o avô paterno, médico, que um dia vem do Norte para se instalar numa pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul. Um dia, em que se preparava para ver passar - na aldeia donde até as cobras fogem - a Volta a Portugal em bicicleta, caiu inanimado no chão. Passado algum tempo, não obstante os cuidados da mulher, Dona Laura, morreu.

Dona Laura, a avó materna, era a única rapariga da aldeia com a terceira classe. Começou por limpar a casa e o consultório do doutor Augusto Mendes. Até que, um dia, o doutor Augusto Mendes disse, Laura, acho que devíamos casar. Dona Laura, parece, ainda vive na aldeia. Um dia que lá passar, vou perguntar por ela.

Dos avós maternos não sabemos os nomes. Estes eram de Lisboa. O avô era do “contra”, participou na campanha do Humberto Delgado. Um dia, depois do jantar, foi levado para a António Maria Cardoso. No dia seguinte, bateram à posta de casa, alguém veio anunciar que tinha morrido. A avó morreu atropelada por um eléctrico na Rua do Alecrim, enquanto a filha a esperava, sentada a uma mesa dum café ali perto.

* * *
Esta é a espinha dorsal da narrativa. Há, depois, as outras histórias que se cruzam com a história principal, onde orbitam várias personagens, cujas ligações não são fáceis de entender. 

Celestino chega à aldeia, a tal que tem nome de mamífero, quarenta anos antes do 25 de Abril de 1974. Neste dia, no 25 de Abril de 1974, é assassinado, exactamente à mesma hora que Marcelo Caetano se rende no Largo do Carmo.

Policarpo é o amigo do Dr. Augusto Mendes. É quem lhe vende a casa na aldeia que tem nome de mamífero. Parte para a Europa numa altura em que o professor de Coimbra estava a começar a carreira. Prometeu (e cumpriu) ir remetendo cartas a dar notícias. O avô de Duarte foi sempre lendo ao neto todas as cartas recebidas do seu amigo Policarpo, à excepção da carta de 1975, se calhar, ou talvez por isso, por se encontrar incompleta. Mais tarde, foi viver para Buenos Aires, onde veio a morrer.

Alcino era barbeiro no salão Playboy, onde o Duarte tinha hábito cortar o cabelo. Antes de começar a cortar o cabelo aos clientes, as mãos do Alcino tremiam como varas verdes. Mas Duarte acreditava que o barbeiro Alcino era, provavelmente, o único barbeiro do mundo a proporcionar aos seus clientes a sensação de terem sobrevivido a um desastre. Como certas pinturas que nos comovem, não pelas suas qualidades estéticas, mas por sabermos, de antemão, que foram pintadas por crianças sem braços…

A professora de canto (de que não sabemos o nome) tinha umas mamas e um rabo que faziam lembrar certos madrigais de Monteverdi. Um dia, Duarte, ao tocar o Prelúdio BWW 867, em Si bemol menor, desmaiou caindo sobre o piano. Acudiu-lhe a professora de piano…o que foi uma sorte para Duarte.

O médico (de que não sabemos o nome), que gostava de Bach, usava, no dedo mindinho da mão esquerda, um anel de ouro que tinha gravadas, em estilo gótico, as letras H e C. O Duarte saiu do consultório, com uma caterva de exames para fazer. O médico passou todo o fim de semana sem sair de casa. Não recebeu qualquer visita, nem atendeu o telefone.

O professor de piano (de que não sabemos o nome), tinha um pai (nome?) que era um apaixonado pelas pinturas de Bruegel. O filho conta a história do pai: Um dia, o pai professor, ao entrar na sala do Museu de História de Arte, em Viena, onde se encontrava o quadro de Bruegel, deparou-se com uma mulher que acabara de colocar uma tela ainda em branco. Uns dias depois, assombrou-se: o rosto da mulher pintada era igual ao rosto da pintora, por sua vez igual ao do quadro do Bruegel. Era um autorretrato. A pintora tinha-se encontrado a si própria, já que, como no quadro, tinha uma perna mutilada. Um dia, a mulher da tela desapareceu sem deixar rasto. Na iminência de uma nova Guerra Mundial, pai e filho regressaram a Portugal. O pai morreu e foi enterrado no cemitério de Vila Viçosa. 

Numa manhã, o sobrevivo professor de piano, depois de se barbear (tempo que aproveitou para nos contar a história do pai) saiu de casa e, na rua, apanhou um táxi: “Queluz, por favor”. Consigo levava um embrulho. O destino foi a casa de Duarte. Em casa só estava a mãe. Explicou-lhe que dentro do embrulho estava um quadro. E contou-lhe a história do quadro. Já muitos anos após a morte do pai, encontrou o quadro num quarto de um hotel em Buenos Aires.”Quero dá-lo ao seu filho” e explicou: “Pelos momentos em que o ouvi tocar Mozart, Beethoven, Bach…” e ainda “que pena ele ter desistido” E acrescentou: “mas acho que o quadro me deu a resposta para a desistência do seu filho. O Duarte desistiu precisamente no momento em que estava prestes a tornar-se igual à música que tocava…".  Então, a mãe de Duarte chorou de felicidade. Nessa noite, quando Duarte voltou para casa, já noite, o pai, ao senti-lo entrar, disse: «Morreu. A tua mãe morreu

Dias mais tarde, ao pendurar o quadro na parede, Duarte reparou: Wien, 3/8/1924 e, ainda, num canto, as iniciais HC. Nesse preciso momento, Duarte lembrou-se de duas coisas: primeira, o anel que o médico que usava no dedo mindinho e que tinha gravado as iniciais HC; segunda, a carta de Policarpo de 1975, que o avô nunca lhe lera e lhe faltavam as últimas folhas. Já, o pai, lembrou-se do gato Joseph era a data exacta em que nascera o gato Joseph. O gato que haveria de morrer em 1/9/1939, a sua data de nascimento.

Artur Monteiro, soldado em África, depois inspector, para quem o pai de Duarte foi a pessoa mais extraordinária que conheceu em toda a vida. Ao ver o quadro, o inspector Monteiro deu-se conta que aquele rosto assustado lhe recordava alguém. Alguém de cujo nome já não se lembrava…Quando chegou a casa, o soldado Monteiro perguntou-se como é que poderíamos esquecer tudo acerca de uma pessoa e, no entanto, lembrarmo-nos do seu rosto até ao ínfimo detalhe.

Por fim, temos a última carta de Policarpo, escrita em Buenos Aires, em 1975, que Duarte nunca lera. Aguardamos ansiosamente que esta carta venha unir, por uma vez, as pontas do novelo que o narrador foi deixando aqui e acolá. De todos os enigmas semeados ao longo da narrativa, o que mais me intriga é o que aconteceu a Celestino naquele dia 25 de Abril de 1974. Finalmente, um sinal de esperança, diz Policarpo “…quiseres satisfazer a mesquinha curiosidade do leitor, revelando os motivos da fuga do Celestino e, consequentemente, o autor da sua morte, então o que tenho hoje para te contar ser-te-á decerto muito útil». Antes, havia dito uma coisa surpreendente, referindo-se à morte de Celestino, «Acontecimento trágico, por um lado, mas maravilhoso, por outro». Maravilhoso? Para aguçar a aguçar ainda mais a curiosidade do leitor, Policarpo escreve, como se de um romance policial se tratasse, o seguinte, «Querido Augusto, por esta altura, deverás estar a interrogar-te sobre o que tem tudo isto a ver com o pobre Celestino. Mas, como podes constatar, ainda te restam muitas folhas na mão. Aproveita esta pausa para esticares as pernas e mandares umas cachimbadas, que o que se segue não é pêra doce

Mais umas tantas linhas e não é que, quando tudo ia ser finalmente revelado, o resto das folhas da carta desapareceram. O Duarte, coitado, fica sem saber. Fica ele e ficamos nós.

* * *
E agora, leitor? Desenrasca-te. Tenta tu ligar as pontas que deixei no ar…parece dizer-nos o autor. 

Confesso que, de palpável, pouco ou nada se consegui com este exercício. Permanecem as principais dúvidas. Porque morreu Celestino? Porque é que Duarte achava que o Índio viria a ser um grande artista? Porque é que o barbeiro Alcino tremia das mãos? Porque é que o médico conhecia Bach como as suas mãos? Quem era a mulher do museu? Por que é que Duarte deixou de tocar piano? Quem é HC, no anel do médico? Mas, sobretudo, o que aconteceu a Celestino.

Uma coisa é certa. Celestino morre justamente no dia 25 de Abril de 1974, no mesmo dia em que a Revolução de Abril põe fim a longos anos de ditadura. 

Mas valerá mesmo a pena tentar ligar os fios do novelo? Há histórias assim. Nem todas histórias têm necessariamente que ter um fim. A nossa vida também é, assim, incompleta.

No final, só um enigma eu consegui decifrar. A pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, virada a sul…ORCA.

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