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terça-feira, 28 de agosto de 2018

À memória do Armando Lopes, meu amigo e ex-camarada de guerra


Mesmo não gostando -  mesmo nada - dos últimos livros do escritor António Lobo Antunes, por vezes tropeço em textos avulsos que me impressionam. É o caso desta carta que ele escreveu a um ex-camarada de guerra e que eu surripo para lembrar um grande amigo meu e ex-camarada, que partiu há 2 anos.  
Armando, meu amigo, enquanto esperas por mim, vai tratando já de arranjar uma mesa com pano verde e parceiros para uma "lerpa" a doer. Não te esqueças. 

«Zé,
Não morreste na cama mas morreste entre lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e a gente ali, diante do teu caixão, tão tristes. Eras meu camarada, que é uma palavra da qual só quem esteve na guerra compreende inteiramente o sentido: não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas. Andaste à pancada com o inspector da Pide para defender os soldados, e pelo facto de ele ter recusado colocar os seus mercenários no rebenta minas sentaste tu ao lado do condutor. Quando a mina rebentou bateste o recorde do mundo do salto em cumprimento e do salto em altura, os dois ao mesmo tempo, que não foram homologados por terem sido feitos com a ajuda de uma explosão favorável. Andei às voltas com o teu pé em papas e sobreviveste, mas África ficou para sempre dentro de ti, a roer-te, a roer-te, e deu-te cabo da vida. Como oficial e como combatente eras duro mas o teu pelotão adorava-te. Tinhas um ascendente natural sobre os subordinados, que sempre defendeste com uma intransigência absoluta. Eras corajoso. Eras terno. E, meu malandro, eras bonito que te fartavas, foste sempre bonito. Usavas o quico no alto da cabeça, como se não te pertencesse, e quando ia visitar-te ao teu destacamento era uma festa de abraços debaixo daqueles eucaliptos enormes, onde se habitava em condições miseráveis, porque quem mandava em Luanda estava-se nas tintas para nós: bem se ralavam com a nossa sorte e a gente rodeados de inimigos e cães. Nunca discutimos porque era impossível discutir contigo: tinhas uma maneira irresistível de te fazer perdoar e eras, apesar de duro, de uma infinita bondade, generoso e doce. Sempre me surpreendeu como estes sentimentos, tão contraditórios, coexistiam harmoniosamente em ti. Passaste meses isolado por independência de espírito e desejo de liberdade, onde a garra tonta do comandante não podia alcançar-te. E depois a mina. E depois o resto. E depois a serena valentia com que aguentaste tudo. Os eucaliptos do Cassa, meu Deus. A raiva. Os soldados de tronco nu com a G3 no braço. Lembrei-me tanto disto agora ao lembrar-me, entre lágrimas, de ti. Até os lençóis de metal te destruírem almoçávamos de quinze me quinze dias e chegavas sempre primeiro com o teu sorriso, o enrolar dos teus cigarros e a dignidade de um imenso sofrimento intimo de que não falavas nunca, que tentavas não mostrar a ninguém mas que nós, oficiais teus camaradas, entendíamos dolorosamente, o Nini, o Boaventura, o Zé Luís, tão duros como tu e da mesma coragem sem vaidade. Graças a Deus que tive companheiros como vocês, que tenho companheiros como vocês. E tu foste para nós um eterno motivo de preocupação porque uma parte tua havia desistido de viver

(apesar do sorriso)

e outra se ia destruindo lentamente. Não conheço uma única pessoa que tenha passado por aquele horror na qual não exista uma parte que se mata devagar, em silêncio, numa discrição pungente que apenas os que passaram por aquilo sabem reconhecer. Mas, juntos nos nossos almoços, somos alegres, partilhando a felicidade de estarmos juntos e separando-nos a contra gosto porque as pessoas têm de trabalhar, não é, porque não somos ricos, não é, por isto por aquilo. Marcamos o novo almoço e afastamo-nos uns dos outros como quem rasga bocados de si mesmo. Zé, eu não sei muito bem o que dizer agora. Sei que não queria que a tua morte tivesse acontecido. Que sinto a tua falta. Que continuo a ver-te chegar ao aviãozeco para me receberes, com uma forma de pegar na arma que nunca notei em mais ninguém como se a G3 nas tuas mãos fosse uma coisa maleável e doce, com não sei quê de mulher. E os eucaliptos por cima de nós falando, falando. E o rio. E o cheiro da terra. E o teu braço a acenar. O teu irmão pediu que falasse na Basílica, junto ao caixão. E eu com tudo isso dentro de mim, a gaguejar. De repente a certeza de ter voltado anos atrás e nós, quase meninos julgando-nos homens, nas Terras do Fim do Mundo, desamparados, a marcarmos cruzinhas nos calendários a cada dia que passava. Lembro-me do Ernesto Melo Antunes, quando morreu o primeiro soldado da sua companhia, me dizer com uma expressão que ficou gravada em mim a fogo

– Tinha jurado a mim mesmo que os levava a todos de volta –

e não era possível, Ernesto, e mesmo que fosse possível metade de nós ficou lá para sempre: a nossa juventude, os nossos projectos, a nossa alma manchada de sangue e de terra. Não vou descrever horrores, não vou contar nada. Não é possível. Não consigo.

Era um fardo pavoroso.

(perdão é um fardo pavoroso)

que continuamos a carregar juntos e falta-nos o teu ombro para nos ajudares a aguentar aquilo. É difícil prosseguir sem ti, nosso irmão, nosso amigo, nosso companheiro, nosso cúmplice: nosso camarada. Havia entre nós a intimidade única da dor partilhada. Eras um dos nossos e cada um de nós, um dos teus. Lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e o nosso camarada lá dentro. Ao telefonarem-me a dizer o que tinha acontecido gritei

– Não

eu que quase não grito. Custa a ideia de habituar-me a não tornar a ver-te, os teus cigarros enrolados, o teu sorriso. E no entanto é isso que melhor guardo de ti, que guardarei de ti: o teu sorriso. Esse ficará para sempre comigo, para sempre connosco. Boaventura, Nini, Zé Luis: somos só quatro já. Mas o teu sorriso há-de continuar e podemos estender as mãos para ele, a aquecer-nos quando houver muito frio. E desde que morreste palavra de honra que há muito frio. Tem paciência, Zé: faz lá um sorriso para a gente»

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