A edição d’ O Crime do Padre Amaro que agora se publica assume, por vários motivos, um importante significado histórico-literário na produção literária queirosiana. Dada à estampa pela primeira vez em 1876, esta segunda versão d’ O Crime do Padre Amaro (a primeira aparecera na Revista Ocidental) viria a ser superada pela terceira versão (1880), desmentindo a indicação “Edição Definitiva” impressa no frontispício do livro. Num escritor como Eça de Queiroz, que longamente trabalhava e retrabalhava os seus textos, dificilmente um romance poderia ser, estando ele vivo, definitivo.
Seja como for, O Crime do Padre Amaro, cuja tosca primeira versão o então jovem escritor de imediato renegou, é um romance com o qual Eça se debateu longamente. Na época e mesmo mais tarde, O Crime do Padre Amaro valeu ao seu autor acerbas críticas, dentre as quais a de plágio, relativamente a um romance de Zola, La Faute de L’Abbé Mouret, título que integrava a série Les Rougon Macquart e que muito sugestivo era para alimentar a tal suspeita de plágio. Mas esta não era talvez a questão mais melindrosa; a temática anticlerical do romance chocava, muito naturalmente, leitores pouco habituados a uma literatura não apenas realista, mas também incipientemente naturalista. Terá sido também por força dessas críticas que um Eça ainda em formação tratou de reescrever o texto do seu romance.
Passava-se isto num tempo literário vivido de forma muito intensa e motivador de opções literárias e ideológicas provindas das chamadas Conferências do Casino. Nelas, Eça de Queiroz fizera uma intervenção de que se não conhece o texto, mas que se sabe ter sido orientada para a recusa do romantismo historicista e para a apologia de um romance de um intuito reformista, virado para o real e para o presente e empenhado em denunciar as derrogações sociais, morais e culturais que uma sociedade decadente (dizia Antero, nessa época mentor de Eça) exibia. Proudhon, Flaubert e Courbet eram as referências ideológicas, literárias e artísticas em que o autor d’ O Crime do Padre Amaro se apoiava; e o conto Singularidades de uma Rapariga Loura (1874) indiciava com clareza o chamamento realista de Eça de Queiroz, nesse início dos anos 70.
Esse chamamento aprofunda-se n’ O Crime do Padre Amaro de 1876 e também n’ O Primo Basílio, que veio logo depois, em 1878. O romancista partia então de um princípio basilar que a nova estética impunha a observação da realidade, dos costumes e das pessoas. Foi essa realidade que Eça conheceu em Leiria, no breve tempo lá passado, quando desempenhou funções de administrador do concelho, pouco antes de iniciar a sua vida profissional como cônsul de Portugal. A aspereza com que nesta versão os costumes religiosos e a vida devota são criticados tinha muito de programático; disso mesmo procurou libertar-se a terceira e definitiva versão do romance. Mas isso não evitou que esta que agora podemos ler (e que naturalmente é muito pouco conhecida do grande público) deixasse uma viva marca anticlerical, revelando, ao mesmo tempo, um pendor naturalista algo imaturo.
A história dos amores de Amaro e de Amélia, um sacerdote sem vocação e uma jovem devota educada na veneração dos padres, tinha tudo para acabar mal. E assim foi. Resultando dos tais amores o nascimento de um filho, havia que encontrar uma solução para uma tão incómoda situação. Incómoda, mas, acrescente-se, relativamente frequente na época. Em desespero de causa, Amaro lança a criança ao rio e consuma um infanticídio que, no episódio em causa, está envolto pelas cores sombrias de uma atmosfera nocturna e quase tétrica. Era assim este Eça ainda contaminado por uma emotividade romântica que o naturalismo mal interiorizado não superara inteiramente.
Para quem conhece O Crime do Padre Amaro que hoje lemos (ou seja: a tal edição reelaborada de 1880 e aparentemente retocada em 1889) o infanticídio é surpreendente, porque Eça o cancelou na versão final; e é só nesta que encontramos personagens e episódios que atestam a maturação a que foi sujeito este texto de 1876, ainda imperfeito mas já capaz de atestar um grande talento literário em desenvolvimento. Por alguma razão (e também com algum exagero) Oliveira Martins terá dito que O Crime do Padre Amaro fora “o único romance que Eça trouxera no ventre”.
Carlos Reis, in jornal Público de 29/10/2013
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