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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

São Valentim, nunca. Viva o Stº António

Da escritora Alice Vieira, com a devida vénia e inteira concordância:

EM DESAGRAVO DE SANTO ANTÓNIO

Descia eu a Rua dos Remédios, numa luta entre o entulho que atravanca os diminutos passeios, e o trânsito na calçada, quando dei comigo diante de uma tabacaria espectacularmente brilhante de tanto vermelho derramado em corações de todos os tamanhos e feitios , de feltro, cetim, seda, riscado, flanela, sei lá o que mais. Pelo meio dos corações, o branco dos ursinhos de peluche cheio de dizeres no mais puro português que em Alfama se fala, a saber “Be my Valentine!”, “You’re the greatest!”, “Hug Me!”, e canecas com “I love You”escrito a toda a volta.

Pois é, São Valentim está a bater à porta dos comerciantes, que não querem que nada falte aos namorados nem, obviamente, às máquinas registadoras das lojas.

Não tenho rigorosamente nada contra o santo, que esteja muito bem instalado lá no assento etéreo onde subiu é o que eu mais desejo. Contra os namorados ainda tenho menos: cá por mim acho que se deve namorar todos os dias, sem necessidade de data fixa ou patrono celestial.

O que me choca - ainda por cima neste bairro em que Santo António é imagem de marca, espalhado em nome de ruas, largos, escadas, becos e travessas, estampado em azulejos de porta (quase sempre de braço dado com São Marçal, que vela contra os incêndios, sejam eles de casas ou de corações) - é a necessidade que se sentiu de importar padroeiro estrangeiro.

Desculpem a insistência mas, em matéria de patriotismo hagiológico, ninguém me leva a palma.
Quem tem um santo como o nosso Santo António, capaz de colar pés decepados, falar aos peixes, assentar praça como qualquer mortal, e livrar o pai da forca (isto para não falar das banais bilhas consertadas e da resposta masculina e pronta a jovens donzelas encalhadas) - que necessidade tem de importar um estranho, a respeito do qual apenas se sabe que foi preso, açoitado e decapitado?

Com um santo como o nosso, alfacinha de gema, a quem chamaram “glória de Portugal, honra de Espanha, tesouro de Itália, terror do Inferno, martelo perpétuo contra a heresia, e entre todos os santos por excelência milagroso” (isto fiquei eu a saber depois de uma visita ao Museu Antoniano feita logo a seguir, em desagravo do santo, evidentemente) - que vem cá fazer o São Valentim?

Se querem encontrar um dia para festejar os namorados, óptimo, sou a primeira a aplaudir. Mas então que se escolha o 13 de Junho, com sardinhas assadas, alcachofras, fogueiras, cravos de papel e manjericos.
Em vez de ursinhos de peluche vendiam-se santinhos de todos os tamanhos, cores e feitios, bilhas partidas ou por partir, e o mais que a imaginação dos artistas descobrisse. Santo António deixava de ser apenas o santo lisboeta (ainda por cima a rivalizar com o São João e o São Pedro)--e passava a santo mundial.

Porque no dia 14 de Fevereiro, juntamente com o São Valentim, importa-se a papinha toda feita, modelo único para todos os países, a globalização no seu melhor, chapa um para namorados brancos, pretos vermelhos ou amarelos; gordos,magros ou assim-assim;bem dispostos ou maldispostos; dadivosos ou unhas de fome; românticos ou vamos-lá-despachar-esta-fantochada.

Vamos lá dar a Santo António o que Santo António merece.
Senão, quando os manjericos em Junho aparecerem para aí sem viço, e nenhuma alcachofra florir de madrugada - não se queixem.
Até mesmo um santo, por muito santo, pode perder a paciência.

Alice Vieira, in “Bica Escaldada”, 2005

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