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sábado, 27 de abril de 2019

Um Encontro Improvável


Idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, donde procede. Parece o princípio de uma confissão, uma autobiografia, mas não. Estamos no dia 30 de Dezembro de 1935, no Hotel Bragança, em Lisboa. Fica na Rua do Alecrim, à direita de quem sobe. O quarto que lhe coube é o duzentos e um. O novo hóspede podia chamar-se Jacinto e ser dono de uma quinta em Tormes, mas não. Chama-se Ricardo Reis.
O quarto tem uma janela virada para o rio, o que deixou o hóspede agradado: Mais vale estarmos sentados ao pé um do outro ouvindo correr o rio e vendo-o. Sobre a mesa estão alguns jornais e revistas já antigos. Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a poesia mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu. Não diz mais este jornal, outro diz de outra maneira. Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite. Aqui está outro jornal que pôs a notícia na página certa, a de necrologia, e extensamente identifica o falecido. Realizou-se ontem o funeral do senhor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, escritor e poeta muito conhecido no meio literário. A leitura dos jornais foi interrompida. Uma rajada súbita fez estremecer as vidraças, a chuva desabou como um dilúvio. Batem à porta do quarto.
- A janela estava aberta e não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado - Disse Ricardo Reis - Agradecia pois que limpasse o soalho. Como se chama?
- Lídia.
- Lídia? Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Lídia sorri, faz o que tem a fazer e sai. Ricardo Reis vai sentar-se no sofá, recosta-se, fecha os olhos. Já sonolento levanta-se, abre o guarda-fato, retira do guarda-fato um cobertor com que se cobre. Agora sim, dorme.

Ricardo Reis está encostado a um candeeiro na praça do Chiado. Enquanto espera o eléctrico 28, que o há-de levar aos Prazeres, pode observar, ao fundo, a estátua do Camões. Não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal, mas se um lhe pusessem qual poriam? Ricardo Reis vai agora no eléctrico. Entontece. Os bancos, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-no a regiões distantes. Sai do carro exausto e sonâmbulo. Deixara de chover. Ricardo Reis foi à administração do cemitério, ao registo dos defuntos, saber onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa, falecido no dia 30 de Novembro de 1935, enterrado no dia 2 do mês que corre. Ricardo Reis agradece as explicações do funcionário e vai à procura do jazigo nº 4371. A assinalar o título de propriedade está o nome de D. Dionísia de Seabra Pessoa. Está ainda outro nome, não mais, Fernando Pessoa, com datas de nascimento e morte. Dentro do jazigo está uma velha tresloucada e está também guardado o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo. Caiu uma bátega forte, o que foi um bom motivo para Ricardo Reis se retirar.

Depois do jantar, Ricardo Reis instalou-se na sala de recepção do hotel, especialmente preparada, naquele dia, para o révellion. Estamos no último dia do ano de 1935. Ricardo Reis não fica para a festa, sobe devagar a escada até ao seu quarto. Vai descansar, mas na rua perpassa uma algazarra medonha. Já deram as onze horas, quando, bruscamente, Ricardo Reis levanta-se e sai. Sobe a Rua do Alecrim, pára diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por respeito da ortografia que o dono do nome usou. Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia. Ou, sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade? Ricardo Reis sente-se confuso. Desce o Chiado e a Rua do Carmo. O Rossio está cheio de gente. Faltam 4 minutos para a meia-noite. Depois é a gritaria da multidão, as campainhas dos eléctricos, as buzinas dos automóveis, o barulho das sereias, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso. Mas, ainda não passou um minuto, e já o som vai decrescendo. Ainda há grupos no Rossio, mas a animação é cada vez menos. A Rua do Ouro, que agora desce, está juncada de detritos e ainda se lançam pela janela fora trapos, caixas vazias, ferro-velho… Ricardo Reis, cansado, regressa ao hotel.

Entra no hotel e segue o corredor que o leva ao seu quarto, que é o duzentos e um. É então que repara que por baixo da porta passa uma réstia de luz. Ter-se-á esquecido de alguma coisa? Meteu a chave à fechadura, abriu, há alguém no quarto. Será Lídia? Não, sentado no sofá estava um homem. Reconheceu-o, imediatamente, apesar de não o ver há já 16 anos. À sua espera, estava Fernando Pessoa.
- Olá! - disse Ricardo Reis, ainda que duvidando de que ele lhe responderia.
Como nem sempre o absurdo respeita a lógica, acontece que respondeu mesmo.
- Viva! - respondeu Fernando Pessoa, estendendo a mão e dando-lhe um abraço.
- Então como tem passado? Um deles fez a pergunta, ou ambos, não importando saber, tão insignificante é a frase.
Ricardo Reis despiu a gabardine, pousou o chapéu e arrumou cuidadosamente o guarda-chuva no lavatório, não fosse pingar o oleado do chão. Puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante. Olham-se com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois de longa ausência. É Fernando Pessoa quem primeiro fala.
- Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei,
- Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse - respondeu Ricardo Reis.
- Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade - explicou Fernando Pessoa.
- Oito meses porquê - perguntou Ricardo Reis.
- Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio - esclareceu Fernando Pessoa.
- E agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal - perguntou Fernando Pessoa.
Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa, mas este recusou com um gesto.
- Já não sei ler, leia você - disse Fernando Pessoa.
E Ricardo Reis leu: «Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos».
- Quando recebi este telegrama decidi regressar, senti que era uma espécie de dever - acrescentou Ricardo Reis.
 - Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me - disse ainda Ricardo Reis.
- Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de outra que provavelmente falhou também - disse Fernando Pessoa.
- Em rigor eu não fugi do Brasil e talvez que ainda lá estivesse se você não tem morrido, disse Ricardo Reis.
- Você continua monárquico - sublinhou Fernando Pessoa.
- Continuo. Sem rei. Pode-se ser monárquico e não querer um rei - confirmou Ricardo Reis.
Ricardo Reis puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante e disparou
- Bem, Fernando, conte lá, se for capaz, a história do nascimento dos heterónimos.
- Vou ver se consigo responder completamente – disse Fernando Pessoa, prosseguindo - Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, você, Ricardo Reis.
- Então, quer dizer, fui o princípio de tudo? – interrompeu o Ricardo Reis.
- Sim, se fica contente. Ano e meio, ou dois anos depois – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos.
- Está bem, não precisa de contar mais – disse Ricardo Reis.
Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou. Tomou a sentar-se, cruzou a perna.
- E agora, vai ficar para sempre em Portugal, ou regressa a casa? - perguntou Fernando Pessoa.
- Ainda não sei, apenas trouxe o indispensável, pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio - retorquiu Ricardo Reis.
- Nenhum vivo pode substituir um morto - sentenciou Fernando Pessoa.
- Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto - concordou Ricardo Reis.
- Bem dito, com essa faria você uma daquelas odes - observou, muito a propósito, Fernando Pessoa.
 Ambos sorriram.
- Diga-me como soube que eu estava hospedado neste hotel - perguntou Ricardo Reis.
- Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens.
- E entrar, como foi que entrou no meu quarto?
- Como qualquer outra pessoa entraria,
- Não veio pelos ares, não atravessou as paredes. Que absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasma - contrapôs Ricardo Reis.
 - Os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres como qualquer mortal. Subi a escada, abri aquela porta, sentei me neste sofá à sua espera - explicou Fernando Pessoa.
 - E ninguém deu pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um desconhecido - ironizou Ricardo Reis.
- Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos vê, querendo nós - Disse Fernando Pessoa.
- Mas eu vejo-o a si - logo contrapôs Ricardo Reis.
- Porque eu quero que me veja, e, além disso, se reflectirmos bem, quem é você? - Perguntou, com grande ironia, Fernando Pessoa, não esperando, obviamente, a resposta.
Ricardo Reis não respondeu. Houve um silêncio arrastado, espesso. Ouviu-se como em outro mundo o relógio do patamar, duas horas. Fernando Pessoa levantou-se.
- Vou-me chegando,
- Já -  interrogou-se Ricardo Reis.
- Bem, não julgue que tenho horas marcadas, sou livre, é verdade que a minha avó está lá, mas deixou de me maçar - disse Fernando Pessoa.
- Fique um pouco mais - implorou Ricardo Reis.
- Está a fazer-se tarde, você precisa de descansar - ripostou Fernando Pessoa.
- Quando volta?.
- Quer que eu volte? - pergunta Fernando Pessoa.
- Gostaria muito, podíamos conversar, restaurar a nossa amizade, não se esqueça de que, passados dezasseis anos, sou novo na terra - quase implorou Ricardo Reis.
- Mas olhe que só vamos poder estar juntos oito meses, depois acabou-se, não terei mais tempo. Quando puder, aparecerei - respondeu Fernando Pessoa.
- Não quer marcar um dia, hora, local? - insistiu Ricardo Reis.
- Tudo menos isso, Então até breve - retorquiu Fernando Pessoa.
- Fernando, gostei de o ver.
- E eu a si, Ricardo,
Fernando Pessoa abriu a porta do quarto, saiu para o corredor. Não se ouviram os seus passos. Ricardo Reis foi à janela. Pela Rua do Alecrim acima afastava-se Fernando Pessoa.

J.B. 
30 de Abril de 2012



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