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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Indivíduo com ventas de contador de gás

Ando a ler as Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, uma edição muito recente e que mostra uma originalidade: pela primeira vez, as cartas de amor entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz são apresentadas em edição conjunta. Há aqui, portanto, uma sequência, o que pressupões um diálogo, uma interacção entre os interlocutores.

Muito há a dizer, há aqui muito pano para mangas. Pode ser que, no final, venha aqui debitar algumas conclusões que eu ache interessantes.

Eu, que raramente me rio, fui hoje traído por uma tímida casquinada, ao ler esta carta do poeta, com data de 9-10-1929:

«Terrível Bebé:

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás (sublinhado meu) e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim

Fernando»

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