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sábado, 22 de novembro de 2014

A "traição" de Ramalho Ortigão


Confesso que andava intrigado. Lia a biografia de Eça de Queirós, um dos maiores escritores da Língua Portuguesa, e não percebia por que razão algumas obras, justamente algumas das mais conhecidas, só foram publicadas muitos anos depois da sua morte.

É verdade que o Eça, um perfeccionista, revia continuamente os seus trabalhos, o que deixava os editores à beira de um ataque de nervos. Eça era um homem doente, mas a sua morte, no dia 16 de Agosto de 1900, aos 55 anos de idade, foi totalmente inesperada. Por isso, entende-se que haja muitas obras póstumas na sua biografia. Todavia, publicadas 25 anos depois já me parecia estranho!

É o caso das seguintes obras: A Capital, O Conde de Abranhos, Alves & Companhia e Correspondência, todas publicadas em 1925, e, ainda, O Egipto em 1926 e Cartas Inéditas de Fradique Mendes em 1929.

Essa dúvida, finalmente, ficou desfeita ao ler "Retrato da Ramalhal Figura", da autoria de A. Campos Matos, ilustre queirosiano.

Atentemos neste extracto a pág.s 33 e 34:  

"Em 27 de Dezembro de 1944, o Primeiro de Janeiro publica uma entrevista com o editor Lello, contemporâneo da edição d’A Cidade e as Serras, intitulado «Diálogo com o Sr. António Lello», onde podemos ler: «Quando Eça faleceu, ainda fui falar com o Ramalho, para ele se encarregar de reunir e ordenar os dispersos do seu amigo. Com surpresa minha, verifiquei que só se interessava pela revisão d’A Cidade e as Serras. Não pareceu atribuir importância ao resto». Uma parte importante desse resto apareceria depois desapareceria depois da morte de Ramalho, em 1915, nas mãos do seu filho José Vasco Ortigão. 

A 11 de Julho de 1924, este comunica do Rio de Janeiro, onde vivia, a José Maria Eça de Queiroz, o segundo filho do escritor, o envio de um importante acervo de material inédito, por saber que José Maria se encontrava a braços com a publicação dos póstumos do pai. Que material era esse? Nada mais mais do que os manuscritos de cinco cartas inéditas de Fradique, o romance A Capital (com cerca de 100 páginas impressas corrigidas pelo punho do seu autor, e ainda O Conde de Abranhos.

Tudo isto viajara para o Rio de Janeiro e retornara a Portugal.

Porque não se publicou o acervo dos póstumos mais cedo, pergunta José Maria no prefácio d’A Capital? Uma das razões era «a convicção de que aquilo tudo já fora visto por Ramalho Ortigão, quando tomara conta da revisão da Cidade e as Serras e de que nada haveria ali de realmente notável ou novo»."

Em conclusão, Ramalho Ortigão esquecera, no seu espólio, a obra inédita do amigo que a viúva (D. Emília) lhe confiara, sujeitando, parte dela, mais tarde, a duas viagens através do oceano, até chegar por fim à Granja, onde José Maria (filho de Eça) a organizou e a publicou.

Uma surpresa. À morte de Eça, Ramalho Ortigão era tido por toda a gente como um dos seus grandes amigos, Escreveram ambos "As Farpas" e "O Mistério de Sintra". Uma semana antes da sua morte, estiveram os dois na Suíça, em Genebra, para onde Eça se deslocara na busca de uma cura para o seu mal. Depois da morte, a viúva de Eça, D. Emília, em carta de 10 de Setembro de 1900, pede a Ramalho o grande favor de rever as obras inacabadas, porque "parece-me  que é ao Sr. Ramalho que o devo fazer, o seu nome está ligado ao do meu querido José!".

Bem se enganou a desgostosa senhora e todos os que confiaram em Ramalho. A único trabalho feito por Ramalho Ortigão foi rever a parte final de "A Cidade e as Serras", com muitos atropelos, diz quem sabe.

Cinco cartas inéditas de Fradique Mendes, o romance A Capital  e ainda O Conde de Abranhos andaram a passear pelo Brasil na mala do senhor Ramalho Ortigão e, por uma grande sorte, foram encontrados no seu espólio.

Muito estranho num homem que até foi capaz de produzir excelentes páginas de exemplar escrita e conhecia, como ninguém, o estilo do seu companheiro de lides literárias. Uma traição incompreensível!  

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