O Abraço de Cronos
“… As festas de Cronos eram estabelecidas em honra da igualdade que existia entre os homens no tempo em que Cronos, expulso do Céu, viera habitar a Terra…”
“… O tempo do seu reinado foi tão venturoso que de se denominou a Idade de Ouro. Nas festas de Cronos reinava uma verdadeira licenciosidade. Os escravos vestiam a toga e fingiam mandar nos senhores. Tudo lhes era permitido…”
Instintivamente deu consigo a olhar-se ao espelho. Com o olhar percorreu os contornos do rosto como se o fizesse pela primeira vez. Era aquele o rosto que os outros viam. Já tinha ouvido dizer que se podia ler no rosto. Teve medo dos seus pensamentos. O seu rosto, sabia-o, alterava-se em função das circunstâncias. Umas vezes jovial…outras soturno, outras ainda sereno e circunspecto, ainda algumas pálido, fogoso, alegre ou irritado. Mas o seu rosto tinha a elasticidade necessária para agir no “teatro” da vida, era digamos, já um mestre do artifício mental, o rosto adoptava o “ar” desejado para cada fim, ou não fosse um perfeccionista nesse tipo de “farsa”. Foram muitos anos, pensou. Pelo esforço de compreensão desta arte, fomos aperfeiçoando a capacidade de, se quisermos, mostrarmos aquilo que não somos. Quantas vezes não tinha sido uma máscara velada. Quantas não escondeu uma duplicidade. E nesta reinação, cada um mostra a máscara que entende, ou não fossemos súbditos de Cronos.
O olhar parou firme num ponto do espelho e admitiu que até vivemos numa festa permanente, ainda licenciosa e libertina para poucos, mas violenta e fatigante para muitos. A todos eles, participantes, Cronos, na sua magnanimidade, contemplou, tendo distribuído múltiplos deleites: o dinheiro, o trabalho, a religião, o fanatismo, os dogmas, as obsessões, as alienações, de acordo com as disposições de cada um. E este foi o presente envenenado de Cronos, preparado de acordo com o cenário de cada qual e à sua inteira medida, tal foi a sua preocupação. Nesse abraço fatal, qual bailado de máscaras, numa irresistível melodia sob a batuta de Cronos, diariamente rodopiam os pálidos, os enervados, os fogosos, os soturnos, os alegres, os bem dispostos e muitos mais, até ao dia do cansaço final.
Desviou enfim o olhar do espelho e ao mesmo tempo, sentiu que algo podia ainda ser feito, que o seu lugar na terra, ainda lhe pertencia e que no fundo, não era apenas mais um, que a infernal orquestra de Cronos não tocava a música de que gostava e que portanto, ainda podia continuar a olhar-se ao espelho com toda a confiança.
Olidino, Braga, Setembro de 2014
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