Da Pastoral da Cultura, de 9 de Maio de 2019
Pedro Mexia e Georges Rouault
«Pode a esperança conviver em paz com a desesperança? O senso comum diz que não, e não têm conta as vezes que me garantiram que é impossível, intolerável, que não faz sentido haver um pessimismo esperançoso; mas eu encontrei-o em muitas ocasiões, é-me mais verdadeiro ode que qualquer um dos seus contrários, e lembrei-me agora, não sei se me ocorreu antes, do caso de Rouault.»
É com estas palavras que começa o penúltimo texto (27 de abril) que Pedro Mexia assina semanalmente no “Expresso”, artigos que, selecionados, constituem a parte substancial do livro “Lá fora” (ed. Tinta da China, 2018), com o qual venceu hoje o Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários da Associação Portuguesa de Escritores.
O francês Rouault (1871-1958) «desenhou e pintou juízes iníquos, prostitutas, bêbados, palhaços e acrobatas, gente miserável, Cristos flagelados e crucificados. Usava cores intensas, escuras ou tenebrosas, contornos duros, imagens carregadas, chocantes para alguns. E, no entanto, afirmou nunca ter procurado intencionalmente o decadente, o grotesco, o escandaloso, até porque não existem assuntos nobres ou baixos, apenas espíritos nobres e espíritos baixos. Disse que pintou a Humanidade como ela se lhe apresentava, no seu mistério, no seu tormento, nos seu despojamento».
«Devota mas compulsiva, a arte de Rouault dependia daquilo a que um dos seus estudiosos, Bernard Dorival, chamou “um cristianismo visceral, (…) vívido e vivo, espesso, denso, direto, carnal”. Um cristianismo do corpo, infracarnal, atento aos múysculos e aos ossos, à carne humilhada e ofendida, e à finitude. Um cristianismo tumultuoso, que lembra Baudelaire, e não é por acaso que Rouault ilustrou uma edição de “As flores do mal”, escreve Pedro Mexia, que em 2018 participou no Encontro Nacional de Referentes da Pastoral da Cultura, realizado em janeiro.
De Rouault, o consultor para a Cultura da Casa Civil do Presidente da República descobriu um texto em que se define «pintor da alegria»: «Porque não? Feliz por pintar, louco de pintura, mesmo no sofrimento mais profundo». E acrescentava: «A alegria de Cristóvão Colombo ao vislumbrar o Novo Mundo, é assim a minha alegria. Tenho em mim um fundo de dor e de melancolia infinita que a vida desenvolveu e de que a minha arte de pintar, se Deus me conceder, será apenas um desenvolvimento e uma expressão bastante imperfeita».
Para o júri, o prémio de 12 mil euros que será entregue em Loulé a 30 de maio, e que já distinguiu D. José Tolentino Mendonça, destaca «um livro de crónicas de um intelectual no mundo de hoje, observando esse mesmo mundo por intermédio da arte (literatura, música, cinema) como coisa íntima e reclusa de si».
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