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terça-feira, 28 de maio de 2019

Alexandre Herculano e as freiras do Lorvão

Com é bem sabido, depois das Guerras Liberais, a extinção das Ordens Religiosas em Portugal, em 1834, foi dirigida inicialmente apenas os conventos masculinos. A extinção final das ordens religiosas femininas ficou regulada apenas em 1862, quando se decidiu que o mosteiro seria extinto aquando da morte da última religiosa. A última freira do mosteiro do Lorvão veio a falecer em 1887. Entretanto, grande parte do património do mosteiro foi adquirido às freiras, encontrando-se hoje disperso por vários museus nacionais. Um exemplo é o Apocalipse do Lorvão, que, em 1853, com autorização das freiras, foi levado para a  Torre do Tombo, por Alexandre Herculano.

O grande historiador Alexandre Herculano ficou muito impressionado, e indignado, com a situação de desespero em que encontrou as freiras ("Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro"), da qual ele foi testemunha ocular, conforme se pode ver pela carta que escreveu ao seu amigo António Serpa.


Carta de Alexandre Herculano a António Serpa Pimentel 

Meu amigo. — Escrevo-lhe do fundo do estreito vale de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancólico e mal assombrado, como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação. Descendo a examinar o arquivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá dentro, nesses corredo­res húmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Esses cabelos nem todos os distinguiu o decurso dos anos: a amargura embran­queceu os mais deles. Quase todas essas faces tem-nas empalide­cido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro. Estas mulheres, ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. 

Naquelas casas de telha vã, negras, gretadas, desamadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeias da Beira, vive uma população laboriosa que até certo ponto se pode chamar abastada, e a quem, pelo menos, não falta o pão nem a alegria. No mosteiro sump­tuoso, vasto e alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão, mas só lágrimas. Lorvão é pior do que o caneiro onde se houvessem metido vinte esquifes de catalépticos, selando-se para sempre a laje da entrada. O cataléptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciência de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na imobilidade, o terror, a deses­peração, a falta de ar matam-no em breve; a sua agonia é tremen­da, mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui, vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperança duvidosa e fugitiva atravessa aquelas grades de envolta com os primeiros raios do sol: todos os dias essa espe­rança fica sumida debaixo das trevas que à tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do poente. Depois, as noites de insónia: depois, o choro: depois, sabe Deus… se a blasfémia! 

Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta espécie de poço, perdido no meio da turba de montes que o ro­deiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre quatro paredes húmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício: imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por ci­ma das lágrimas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre. Imagine tudo isto e sentirá acender-se-lhe no ânimo uma indignação reconcentrada e inflexível. 

Há poucos dias passou-se em Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição: aspiravam à felicidade do mendigo que pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinha. A sua voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse túmulo de vivos. Ao menos surgiam como Lázaro da sepultura. 

Mas porque o importuno com esta longa história? Não é, meu amigo, só para desabafo; é pura lhe pedir um favor. Suponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pálidas das monjas de Lorvão, por onde as lágrimas se penduram quatro a quatro, en­quanto vozes convulsas descreviam cenas do longo drama de mi­séria, de que este sepulcro de vivos tem sido teatro durante vinte anos: suponha que olhava para estas paredes verdoengas, cujo as­pecto produz um sentimento inexplicável de frio, apesar do calor da atmosfera num dia de Julho; para as alfaias roçadas e puidas: para os próprios trajos das freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra só: infortúnio, infortúnio, infortúnio! que faria? Com o seu coração, com os seus princípios, e redactor de um jornal que tem largas simpatias, sentia-se grande e forte, pondo a sua pena eloquente ao serviço da desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo, faça-o! 

Peça esmola para as freiras de Lor­vão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice têm fome. A velhice é santa! Ponha esse contraste do passado e do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se lem­brem, com alguns cruzados, das pobres que gemem debaixo destas abóbadas, escondidas no meio dos montes lazeirentos e agrestes do concelho de Penacova. Ao governo não peça nem diga nada: deixe esses homens ao seu destino, deixe-os estofar poltronas e dormir nelas. Deus e os vindouros hão-de julgar-nos a todos… 

Se entender que esta carta de uma testemunha ocular pode servir de tema às suas considerações, publique-a. O homem que vê o que eu vi e abafa no peito o grito da indignação, ou é um malvado ou um covarde, e eu espero não merecer jamais nenhum destes títulos. Imprima esta carta no todo ou em parte, se quiser: porque folgarei com isso. O que importa é ver se obtemos desper­tar a compaixão pública a favor destas infelizes. 

Alexandre Herculano

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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