Vinte e sete de Novembro de 1935, quarta-feira. Café Martinho da Arcada, em Lisboa. É quase noite. Fernando Pessoa, depois de um dia de trabalho, está sentado na mesa do costume. Aguarda os amigos Almada Negreiros e Gaspar Simões. Enquanto não chegam, avanço para a mesa e, saltando por cima dos cumprimentos que a ética manda, disparo a primeira pergunta:
O Sr. Pessoa
escreveu tantas vezes sobre a morte, como gostaria de ver recordada a sua obra?
Os meus amigos
dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos – dizem-no vendo o
que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (senão eu não citava o que eles
dizem…). Mas eu sei ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei
eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo
cheire a podridão.
Ainda assim,
escreveu muito sobre a morte…
A terra é feita de
céu. A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e
caminho.
Não chegou a
responder-me: como vê a vida para lá da morte?
A morte é a curva da
estrada, morrer é só não ser visto.
Considera-se um
génio?
Génio? Neste momento
cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, e a história não marcará,
quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não,
não creio em mim. Em todos os manicómios há malucos com tantas certezas! Eu,
que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Sei que tem uma
grande admiração por Cesário Verde. Pensa o mesmo do poeta?
Quando Cesário Verde
fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado de comércio, mas o poeta
Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que sua, o
cheiro da vaidade. O que ele sempre foi, coitado, foi o Sr. Verde empregado no
comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer
que nasceu a apreciação do poeta.
Pessoa mostra sinais
de agitação. Pigarreia de vez em quando. No corpo pesam-lhe as dores de todas as
angústias...
Mora já, há alguns
anos, no bairro de Campo de Ourique e trabalha em escritórios da Baixa de
Lisboa. Sabendo que o Sr. Pessoa não tem viatura própria, que transporte
público utiliza?
Vou num carro
eléctrico e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os
pormenores das pessoas que vão adiante de mim…Entonteço. Os bancos do
eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões
distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários,
vidas, realidades, tudo.
Pessoa foi baptizado na Igreja dos Mártires no dia 27 de Julho de 1888. Acredita em Deus?
Não acredito em Deus
porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que
viria falar comigo. E entraria pela porta dentro, dizendo-me, Aqui estou!...Mas
se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e luar, então acredito nele,
acredito nele a toda a hora. E a minha vida é toda uma oração e uma missa. E
uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Sendo frequentador
habitual do Café Arcada do Martinho, no Terreiro do Paço, tem por hábito
passear junto ao rio?
O Tejo é mais belo
que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Pessoa trabalhou em
muitos escritórios na Baixa de Lisboa. Recorda algum patrão com simpatia?
O patrão Vasques.
Lembro-me já dele no futuro côa a saudade que hei-de ter então…Seja onde
estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório dos
Douradores…Vejo de lá longe, como o vejo hoje de aqui mesmo – estrutura média,
atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável
chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias
maradas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as
faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a
horas.
Quando diz que o
melhor do mundo são as crianças, pensa isso assim ou foi apenas para rimar com
danças?
Deus criou-me para
criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a vida me batesse e
me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão
fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão
acarinhado, porque deitaram ao lixo o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas
ruas uma criança a chorara, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a
tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto.
O que diz agora é
verdade ou está a fingir?
O poeta é um
fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que
deveras sente.
Quando revê a sua
vida, reconhece-lhe os erros, as opiniões certas antes do tempo, consegue
traçar a sua própria trajectória?
Não sou nada. Nunca
serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo.
Diga-me, Pessoa,
sente saudades do seu tempo de infância?
Eu era feliz na casa
antiga. Até eu fazer anos, era uma tradição de há séculos. Eu tinha a grande
saúde de não perceber coisa nenhuma. De ser inteligente para entre a família. E
de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter
esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida,
perdera o sentido da vida.
E pode descrever
essa casa antiga?
Vejo tudo outra vez
com muita nitidez, que me cega. A mesa posta, com mais lugares, com melhores
desenhos na loiça, com mais copos. O aparador com muitas coisas – doces,
frutas, o resto na sombra debaixo do alçado. As tias velhas, os primos
diferentes, e tudo por minha causa! No tempo em que festejavam o dia dos meus
anos!
O seu namoro com
Ophelia Queiroz acabou por ser um desencontro. Nunca levou esse namoro muito a
sério. Pelo menos, é o que se conclui da leitura das cartas que escreveu a
Ophelia.
Todas as cartas de amor
são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também
escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de
amor, se há amor, têm de ser ridículas. Mas, afinal, só as criaturas que nunca
escreveram cartas de amor é que são ridículas.
Para além da Ophelia
Queiroz, que até influenciou a sua escrita, não teve lá muitos amores, pois
não? Porquê?
Nunca amamos
ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito
nosso – em suma, e a nós mesmos – que amamos.
Bem, agora vou
roubar uma frase ao Adolfo Casais Monteiro: Pessoa, conte lá essa história da
génese dos heterónimos.
Aí por 1912, salvo
erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole
pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos,
mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer
aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.
Muito bem, e os outros?
Num dia em que
finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda
alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que
se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de
Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase.
Estou a compreender
tudo muito bem…
Aparecera em mim o
meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos
que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e
escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de
Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando
Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
E depois de Alberto
Caeiro?
Aparecido Alberto
Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns
discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente
um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem
emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o
homem com o nome que tem.
E Bernardo Soares
quando é que aparece?
O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com
Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que
tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação
dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.
Reparo que o Sr.
Pessoa, ao longo desta entrevista, respondeu, muitas vezes, em nome dos seus
heterónimos…
Referi-me, como viu,
ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro
de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando me
for dado o Prémio Nobel. Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro quem
é que pensa ou sente.Sou somente o lugar onde se sente ou pensa. Tenho mais
almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo…
E sua relação com
Miguel Torga? Parece que não foi muito feliz...
Recebi uma carta do
Adolfo Rocha. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem
áspera, nem é propriamente insolente, mas intima-me a explicar a minha carta
anterior, diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a
respeito do livro dele, explica, em diversos ângulos obtusos, que os
intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou. Achei pois melhor
não responder. Que diabo responderia?
Podemos dizer que
Mário Sá-Carneiro foi o seu maior amigo, mas morreu prematuramente. É assim?
Morre jovem o que os
Deuses amam…Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se
por morte o acabamento do que constitui a vida…Génio na arte, não teve
Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida…Este morreu jovem, porque os
Deuses lhe tiveram muito amor… Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem
cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os
Deuses o quiseram assim.
Tem algum mote que o
acompanhe?
Tudo vale a pena
quando a alma não é pequena.
Chegaram,
entretanto, os amigos de Pessoa, Almada Negreiros e Gaspar Simões. Dou por
terminada a entrevista, agradeço e saio. Afasto-me, mas fico, por perto, a
observar aquela que será a última tertúlia de Pessoa com os amigos.
Pessoa sai,
cambaleia e ri de uma maneira estranha. Caminha na direcção da Rua dos
Douradores, se calhar à procura, pela última vez, do rasto de Bernardo Soares...
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