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domingo, 15 de janeiro de 2017

Mia Couto - Devaneando por Mulheres de Cinza

«[…] Em muitos aspectos me aprendi como uma criatura entre fronteiras: um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra de oralidade. […]»

Mia Couto (5 de Julho de 1955 - ), Excerto da entrevista na Revista Ípsilon/Público, em 7 de Junho de 2013 


Alguns apontamentos sobre "Mulheres de Cinza"

Mulheres de Cinza é o primeiro livro de uma trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano. Ngungunyane (ou Gungunhane, como ficou conhecido pelos portugueses) foi o último de uma série de imperadores que governou metade do território de Moçambique.
Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, Ngungunyane foi deportado para os Açores onde veio a morrer em 1906. Os seus restos mortais terão sido trasladados para Moçambique em 1985. Existem, no entanto, versões que sugerem que não foram as ossadas do imperador que voltaram dentro da urna. Foram torrões de areia. Do grande adversário de Portugal restam areias recolhidas em solo português. 
Esta narrativa é uma recreação ficcional inspirada em factos e personagens reais. Serviram de fonte de informação uma extensa documentação produzida em Moçambique e em Portugal e, mais importante ainda, diversas entrevistas efetuadas em Maputo e Inhambane.


Mulheres de cinzas é um romance histórico sobre a época em que o sul de Moçambique era governado por Ngungunyane (ou Gungunhane, como ficou conhecido pelos portugueses), o último dos líderes do Estado de Gaza - segundo maior império no continente comandado por um africano.
Em fins do século XIX, o sargento português Germano de Melo foi enviado ao vilarejo de Nkokolani para a batalha contra o imperador que ameaçava o domínio colonial. Ali o militar encontra Imani, uma garota de quinze anos que aprendeu a língua dos europeus e será sua intérprete. Ela pertence à tribo dos VaChopi, uma das poucas que ousou se opor à invasão de Ngungunyane. Mas, enquanto um de seus irmãos lutava pela Coroa de Portugal, o outro se unia ao exército dos guerreiros do imperador africano.
O envolvimento entre Germano e Imani passa a ser cada vez maior, malgrado todas as diferenças entre seus mundos. Porém, ela sabe que num país assombrado pela guerra dos homens, a única saída para uma mulher é passar despercebida, como se fosse feita de sombras ou de cinzas.
Ao unir sua prosa lírica característica a uma extensa pesquisa histórica, Mia Couto construiu um romance belo e vívido, narrado alternadamente entre a voz da jovem africana e as cartas escritas pelo sargento português.

O livro "Mulheres de Cinzas" primeiro volume da triologia "As Areias do Imperador" mistura ficção e História sobre Moçambique do século XIX, no período em que o país era governado por Ngungunyane, último líder do estado de Gaza.


A obra é narrada pelo ponto de vista de Imani e Germano de Melo. Imani é uma adolescente de quinze anos da tribo VaChopi, cujo nome significa "quem é?" e traz a perspectiva não apenas dos negros sobre uma guerra que não compreendem inteiramente, mas, principalmente, a angústia das mulheres nos tempos de guerra.

O ponto de vista de Germano de Melo é através de cartas endereçadas ao Conselheiro José D'Almeida e explicita o ponto de vista europeu sobre os "bárbaros" africanos.

Não sei por que me demoro tanto nestas explicações. Porque não nasci para ser pessoa. Sou uma raça, sou uma tribo, sou um sexo, sou tudo o que me impede de ser eu mesma.

Imani, que é uma das poucas pessoas do povoado que fala e entende muito bem o português, é enviada como intérprete para Germano de Melo e sua proximidade ao sargento português transforma a ambos.

Os capítulos narrados por Imani expõem de forma poética e triste a resistência VaChopi e, principalmente, sua resistência enquanto mulher. A sua própria família acredita que ela deveria se juntar ao estrangeiro e sumir da zona de conflito, pois na Moçambique do século XIX a mulher é um ser nulo que só passa a existir enquanto pessoa depois de se unir a um homem e gerar um filho. Mas diante da situação miserável em que o país se encontra, o melhor para a filha seria ir embora para Portugal.

.As cartas enviadas por Germano ao longo da narrativa têm uma significativa transformação. De início elas são simples relatórios expondo a situação portuguesa no conflito moçambicano. Com o passar dos meses vemos um homem mais sensível e propenso às crenças africanas, sendo pouco a pouco, sensibilizado por essa menina que ele considera especial.

Olhei os homens labutando e não pude deixar de notar a falta de habilidade dos portugueses. E dei comigo a pensar: nós, os negros, sabemos mexer numa pá incomparavelmente melhor que outra qualquer raça. Nascemos com essa habilidade, a mesma que nos faz dançar quando precisamos rir, rezar ou chorar. Talvez porque há séculos somos obrigados a enterrar, nós mesmos, os nossos mortos, que são mais que as estrelas.

A questão mais pungente no livro é a situação das mulheres no ambiente hostil transformado por guerras e invasões. Elas não choram apenas os seus filhos, elas vivem o luto de todas as guerras passadas e são obrigadas a tornarem-se invisíveis, como se fossem feitas de cinzas, para amenizar seu sofrimento e não serem ainda mais violentadas pelos homens de sua e outras terras.

É por isso que às moças solteiras se atribui o nome de lamu, palavra que significa "aquela que espera". É um modo de dizer que seremos pessoas apenas depois de sermos esposas.

É muito difícil chegar ao fim dessa leitura sem se emocionar e aprender com a jovem Imani. Suas reflexões carregadas de ensinamentos ancestrais das crenças africanas nos coloca a refletir sobre a triste situação que acometeu o continente africano, nossa parcela de culpa e egoísmo e como a situação do continente ainda hoje sofre os terríveis reflexos da invasão européia.

É um livro poético e triste e uma excelente porta de entrada na obra de Mia Couto e também na literatura africana, pois apesar de estar presente os elementos da cultura africana, que pode causar certo estranhamento a quem não está acostumado, a linguagem é mais palatável e de fácil compreensão.

O Império de Gaza foi o segundo maior império africano liderado por um nativo e teve como último monarca Ngungunyane, ou Gungunhane, como ficou conhecido entre os portugueses.

Por ter se rebelado e ameaçado o domínio colonial português, Ngungunyane – apelidado, ainda, de “Leão de Gaza” – foi derrotado e deportado para o Açores pela coroa portuguesa em 1895, vindo a falecer em 1906. O Império de Gaza foi o que hoje conhecemos como a metade sul de Moçambique. O nome de Ngungunyane permaneceu como símbolo de glória e mito, e lendas e histórias foram criadas em cima de sua personalidade.

Com base em extensa pesquisa, o escritor moçambicano Mia Couto lançou no final de 2015 o primeiro romance histórico da trilogia As areias do Imperador, que conta os derradeiros anos do Império de Gaza, nas vozes de dois narradores, uma garota africana e um militar português degredado. O segundo e terceiro volume da trilogia têm previsão de lançamento para esse ano e 2017, respectivamente. O título vem de uma das lendas acerca do caixão com o corpo de Ngungunyane, oficialmente repatriado para Moçambique em 1985, cujo conteúdo, dizem, contém apenas areia colhida em solo português. As areias também significam um império que ruiu.

No primeiro romance, Mulheres de Cinzas, somos apresentados a Imani, garota da tribo VaChopi, uma das poucas que resistem aos avanços de Ngungunyane e permanecem fiéis a Portugal. “Na minha língua materna ‘Imani’ quer dizer ‘quem é?’. Bate-se a uma porta e, do outro lado, alguém indaga: — Imani? Pois foi essa indagação que me deram como identidade. Como se eu fosse uma sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta.”, diz Imani sobre a origem do seu nome.

Do outro lado, alternada à voz de Imani, temos as cartas que o sargento Germano de Melo envia a Portugal relatando sua experiência no vilarejo de Nkokolani, onde Imani lhe serve de intérprete.

A família de Imani é dividida: o seu irmão mais velho, Dubula (“disparo de arma”, em zulu), “inteligente e expedito”, se juntou às tropas de Ngungunyane para combater Portugal. Mwanatu, o irmão mais novo, “lerdo e incapaz”, fascinado pelos portugueses, serve de ajudante e mensageiro de Germano de Melo, com a promessa de um dia partir para Lisboa e entrar no exército.

Pouco a pouco, Imani e Germano de Melo se aproximam, apesar das diferenças étnicas e culturais. Imani, que se considerava uma alma de corpo vazio, começa a ser notada por Germano como mais que um corpo sem alma – pois, à época, acreditava-se, segundo a tradição cristã, que os negros e índios não possuíam alma. “Confesso começar a sentir uma atração por Imani. (…). E não é apenas um sentimento carnal. É algo mais intenso, mais total, algo que jamais havia sentido por uma mulher branca.”

Há também um mordaz quadro da condição feminina e das guerras que assolavam a África naquela época. Em um dos capítulos sobre Imani, nos deparamos com a seguinte citação: “A diferença entre a Guerra e a Paz é a seguinte: na Guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na Paz, os pobres são os primeiros a morrer. Para nós, mulheres, há ainda uma outra diferença: na Guerra, passamos a ser violadas por quem não conhecemos.”

A obra mantém a escrita já conhecida de Mia Couto, sempre poética, com muitos neologismos e fatos fantásticos, como o avô de Imani, que vive por baixo da terra, escavando até onde pode, ou um militar português que, de tão podre, carrega moscas dentro de si; ou, ainda, a espingarda que traz os ecos dos gritos das pessoas que assassinou. Contudo, esse ritmo poético se mantém apenas na voz de Imani. As cartas do sargento tornam a narrativa um tanto quanto descritiva e, por vezes, enfadonha. Mas nada que atrapalhe a fluidez da história.

A leitura vale a pena tanto pelo prazer literário quanto pelo resgate histórico de Moçambique. O autor, apesar de também trabalhar como biólogo, é um escritor conhecido tanto na comunidade lusitana quanto internacionalmente, tendo cerca de duas dezenas de livros publicados, entre romances, contos e crônicas. Foi vencedor, em 2013, do prêmio Camões.

No lançamento do livro, Mia Couto declarou que é necessário conhecermos os vários lados da mesma história. “Infelizmente, acho que nós, em Moçambique (…), estamos ainda prisioneiros de uma visão única do passado e temos que nos libertar disso. Essa versão é válida também, mas é preciso que a gente pense que a história foi escrita por várias mãos e por vários vencidos. Houve vencidos do nosso lado e houve vencidos do lado de Portugal. Nesse livro eu quero trazer essas diferentes vozes”, disse.

O presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, comentou sobre o livro: “Mais vale sermos nós a despertarmos fantasmas que fantasmas a despertarem a nós”.


Entrevista

‘lnvento muito”

A Espada e a Azagaia, assim se chama o mais recente romance do autor moçambicano, faz parte daquele que é, talvez, o seu mais ambicioso projeto ficcional: uma trilogia centrada nos ultimos anos do Estado de Gaza, o império que Gungunhana Iiderou no sul de Moçambique no final do seculo XIX. Sem pretenções de assinar um romance histórico, Mia quer apenas devolver ao passado o direito de existir no plural.

Segundo volume da trilogia, como é que a história evolui?

O papel de narração prossegue repartido entre Imani a voz africana e o Sargento que é a voz portu guesa. Mas neste segundo volume aparece finalmente o Gungunhana, que no primeiro volume surgia apenas como um fantasma distante, na figura de um receio que era conjugado por todos. Agora ele aparece realmente e, contrariando a ideia de homem podrosíssimo, surge com as fragiliades de qaulquer humano.

O que é que o fascinou neste momento histórico ao ponto de o querer contar em livro?

Há já algum tempo que andava perseguido pela ideia de devolver ao passado aquilo que eu acho que o passado tem como direito, que é existir no plural. Nós falamos do passado como se houvesse só um, mas até na nossa própria existência há uma série de versões o mesmo passado. Quando me sento em família, e a minha família é muito particular, porque começa como se não existisse nada antes dos meus pais e, mesmo assim, com tão pouca possibilidade de recuo, as versões que existem do passado são muito diversas. No meu caso tenho a particuIaridade de não ter memória, então invento muito, os meus irmãos passam o tempo a dizer: “estás a inventar”, mas eles também inventam.

Talvez todos nós o façamos.
Exatamente, é como os sonhos. Quando nos encontrávamos ao pequeno-almoço lá em casa, tanto a minha mulher como os meus filhos se lembravam sempre de uma maneira muito viva e colorida dos sonhos que haviam tido e eu ficava inferiorizadíssimo, porque era o único que não me lembrava de coisa nenhuma, então comecei a inventá-los. O passado também tem essa particularidade. Aquilo que nós lhe podemos pedir é que ele nos ajude a construir um presente plural.

E isso acontecia na versão portuguesa e moçambicana da História?

A operação que foi feita foi semelhante. Passou muito pela simplificação, redução e aproveitamento polítíco. Os países fazem sempre isso, precisam de heróis e o herói tem de ser exemplar e conter uma mensagem moral muito clara. Isto é difícil num país como Moçambique, que é muito recente, é preciso ter algum cuidado. No gera1, o convite que me faziam era: “não acordes fantasmas”.

lsso dava-lhe mais vontade de perseguir a história?

Por um lado sim, mas por outro, estamos a falar de um país que tem uma guerra, que parecia que estava superada e afinal não está, ou seja, o meu desejo de escritor não poderia estar acima da minha noção de cídadania, de não querer criar uma situação constrangedora, trazendo mais lenha para a fogueira. Mas depois pensei: primeiro, eu não tenho tanto poder assim, a Literatura também não e, repleto desse tipo de neologismos, não é uma coisa exclusivamente literária. Se alguma coisa a gente ganha com a experiência da Literatura, e eu gänho muito pouco, mas também não quero ganhar mais, porque se perde sempre uma certa espontaneidade quando achamos que crescemos, mas se há algo que posso dizer que hoje faço com maior facilidade é realmente a contenção, é saber que não é preciso colocar na montra aquilo que se quer mostrar.

E os prémios sucedem-se. Como é que recebe cada uma dessas distinções?

Mais do que dos prémios gosto que as pessoas me parem na rua e me contem histórias. Isto acontece sobretudo em Moçambique onde as pessoas o fazem de uma maneira que não é exatamente de uma relação com um ídolo, mas sim como o mensageiro de uma história que eles gostavam que alguém contasse.

Cá em Portugal a relação com os leitores é diferente?

Sim, não tem comparação e o mesmo é válido em relação aos brasileiros, onde isso é ainda mais complicado gerir, porque é uma sociedade maisdo espetáculo. Cheguei há poucos dias de lá e houve encontros que tiveram 1200 pessoas, outros em que ficaram mais de mil pessoas de fora e eu não pertenço a esse mundo, não quero ser uma estrela, não por uma questão de humildade, mas porque acho que um escritor deve ter um outro tipo de encontros com as pessoas, mais familiar, num domínio mais recatado.

E isso só lhe é possível em Moçambique?

Tem de ser possível em todo o lado, caso contrário eu deixo de aparecer. Não gosto de estar em palco, porque esse não ´meu lugar, gostava por exemplo de estar com 30 ou 40 pessoas, porque é nesse lugar que posso ter essa relação de intercâmbio com os leitores que eu ambiciono.

Como é que isso seria possível?

Tendo mais tempo, coisa que eu não tenho. Em Moçambique ainda vou tendo, às vezes consigo fazer encontros com cerca de 12 jovens, gente muito interessada na poesia, que quer ser escritor e para quem o importante nesses encontros não sou eu, mas sim a escrita, como se cada um de nós quisesse a mesma coisa.

Falando em poesia, tem tido tempo para lhe regressar?

A poesia surge sempre. não corisigo evitar. E surge de uma maneira muito curiosa: sempre que penso o início de um romance só me sai poesia, às vezes até me atrapalha (risos).

No meio disto tudo ainda há tempo para ser biólogo?

Cada vez menos. O tempo, sempre o tempo. Sei que vou ter de mudar qualquer coisa. A briga é sempre esta, que é comum a todos nós, não é ter mais mais tempo, é ter um tempo de que sejamos donos, um tempo nosso, e eu sinto que estou a perder isso, já não é só por causa da Literatura é mesmo a questão de querer ser feliz.


Novembro de 2016

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