1º
Idade quarenta e oito anos, natural do Porto,
estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro,
donde procede. Parece o princípio de uma confissão, uma autobiografia, mas não.
Estamos no dia 30 de Dezembro de 1935, no Hotel Bragança, em Lisboa. Fica na
Rua do Alecrim, à direita de quem sobe. O quarto que lhe coube é o duzentos e
um. O novo hóspede podia chamar-se Jacinto e ser dono de uma quinta em Tormes,
mas não. Chama-se Ricardo Reis.
O quarto tem uma janela virada para o rio, o que
deixou o hóspede agradado: Mais vale
estarmos sentados ao pé um do outro ouvindo correr o rio e vendo-o. Sobre a
mesa estão alguns jornais e revistas já antigos. Causou dolorosa impressão nos
círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu,
espírito admirável que cultivava não só a poesia mas também a crítica
inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu. Não diz mais este
jornal, outro diz de outra maneira. Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista,
dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte
num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite. Aqui está outro
jornal que pôs a notícia na página certa, a de necrologia, e extensamente
identifica o falecido. Realizou-se ontem o funeral do senhor Fernando António
Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, escritor e poeta
muito conhecido no meio literário. A leitura dos jornais foi interrompida. Uma
rajada súbita fez estremecer as vidraças, a chuva desabou como um dilúvio.
Batem à porta do quarto.
- A janela
estava aberta e não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado - Disse
Ricardo Reis - Agradecia pois que limpasse
o soalho. Como se chama?
- Lídia.
- Lídia?
Vem
sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Lídia sorri, faz o que tem a fazer e sai. Ricardo Reis vai
sentar-se no sofá, recosta-se, fecha os olhos. Já sonolento levanta-se, abre o
guarda-fato, retira do guarda-fato um cobertor com que se cobre. Agora sim,
dorme.
2º
Ricardo Reis está encostado a um candeeiro na
praça do Chiado. Enquanto espera o eléctrico 28, que o há-de levar aos
Prazeres, pode observar, ao fundo, a estátua do Camões. Não se lembraram de
pôr-lhe versos no pedestal, mas se um lhe pusessem qual poriam? Ricardo Reis
vai agora no eléctrico. Entontece. Os bancos, de um entretecido de palha forte
e pequena, levam-no a regiões distantes. Sai do carro exausto e sonâmbulo.
Deixara de chover. Ricardo Reis foi à administração do cemitério, ao registo
dos defuntos, saber onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa,
falecido no dia 30 de Novembro de 1935, enterrado no dia 2 do mês que corre.
Ricardo Reis agradece as explicações do funcionário e vai à procura do jazigo
nº 4371. A assinalar o título de propriedade está o nome de D. Dionísia de
Seabra Pessoa. Está ainda outro nome, não mais, Fernando Pessoa, com datas de
nascimento e morte. Dentro do jazigo está uma velha tresloucada e está também
guardado o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de
loucura no mundo. Caiu uma bátega forte, o que foi um bom motivo para Ricardo
Reis se retirar.
3º
Depois do jantar, Ricardo Reis instalou-se na sala
de recepção do hotel, especialmente preparada, naquele dia, para o révellion. Estamos no último dia do ano
de 1935. Ricardo Reis não fica para a festa, sobe devagar a escada até ao seu
quarto. Vai descansar, mas na rua perpassa uma algazarra medonha. Já deram as
onze horas, quando, bruscamente, Ricardo Reis levanta-se e sai. Sobe a Rua do
Alecrim, pára diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por respeito da
ortografia que o dono do nome usou. Sobre a nudez forte da verdade o manto
diáfano da fantasia. Ou, sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da
verdade? Ricardo Reis sente-se confuso. Desce o Chiado e a Rua do Carmo. O
Rossio está cheio de gente. Faltam 4 minutos para a meia-noite. Depois é a
gritaria da multidão, as campainhas dos eléctricos, as buzinas dos automóveis,
o barulho das sereias, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos,
beijam-se homens e mulheres ao acaso. Mas, ainda não passou um minuto, e já o
som vai decrescendo. Ainda há grupos no Rossio, mas a animação é cada vez
menos. A Rua do Ouro, que agora desce, está juncada de detritos e ainda se
lançam pela janela fora trapos, caixas vazias, ferro-velho… Ricardo Reis,
cansado, regressa ao hotel.
4º
Entra no hotel e segue o corredor que o leva ao
seu quarto, que é o duzentos e um. É então que repara que por baixo da porta
passa uma réstia de luz. Ter-se-á esquecido de alguma coisa? Meteu a chave à
fechadura, abriu, há alguém no quarto. Será Lídia? Não, sentado no sofá estava
um homem. Reconheceu-o, imediatamente, apesar de não o ver há já 16 anos. À sua
espera, estava Fernando Pessoa.
- Olá! -
disse Ricardo Reis, ainda que duvidando de que ele lhe responderia.
Como nem sempre o absurdo respeita a lógica,
acontece que respondeu mesmo.
- Viva!
- respondeu Fernando Pessoa, estendendo a mão e dando-lhe um abraço.
- Então como
tem passado? Um deles fez a pergunta, ou ambos, não importando saber, tão
insignificante é a frase.
Ricardo Reis despiu a gabardine, pousou o chapéu e
arrumou cuidadosamente o guarda-chuva no lavatório, não fosse pingar o oleado
do chão. Puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante. Olham-se com
simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois de longa
ausência. É Fernando Pessoa quem primeiro fala.
- Soube que
me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei,
- Pensei que
estivesse, pensei que nunca de lá saísse - respondeu Ricardo Reis.
- Por
enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade -
explicou Fernando Pessoa.
- Oito meses
porquê - perguntou Ricardo Reis.
- Contas
certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andamos na
barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio -
esclareceu Fernando Pessoa.
- E agora
diga-me você que é que o trouxe a Portugal - perguntou Fernando Pessoa.
Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do
casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa,
mas este recusou com um gesto.
- Já não sei
ler, leia você - disse Fernando Pessoa.
E Ricardo Reis leu: «Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos».
- Quando
recebi este telegrama decidi regressar, senti que era uma espécie de dever
- acrescentou Ricardo Reis.
- Houve ainda uma outra razão para este meu
regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma
revolução, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí
decidi-me - disse ainda Ricardo Reis.
- Você,
Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove
foi para o Brasil por causa de outra que provavelmente falhou também -
disse Fernando Pessoa.
- Em rigor
eu não fugi do Brasil e talvez que ainda lá estivesse se você não tem morrido,
disse Ricardo Reis.
- Você
continua monárquico - sublinhou Fernando Pessoa.
- Continuo.
Sem rei. Pode-se ser monárquico e não querer um rei - confirmou Ricardo
Reis.
Ricardo Reis puxou uma cadeira e sentou-se
defronte do visitante e disparou
- Bem, Fernando, conte lá, se for capaz, a história
do nascimento dos heterónimos.
- Vou ver se consigo responder
completamente – disse Fernando Pessoa, prosseguindo - Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande),
veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em
verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia
regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal
urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem
que eu soubesse, você, Ricardo Reis.
-
Então, quer dizer, fui o princípio de tudo? – interrompeu o Ricardo Reis.
- Sim,
se fica contente. Ano e meio, ou dois anos depois – foi em 8 de Março de 1914 –
acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé,
como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da
minha vida. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva
e subconscientemente – uns discípulos.
-
Está bem, não precisa de contar mais – disse Ricardo Reis.
Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco
pela saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou. Tomou a
sentar-se, cruzou a perna.
- E agora,
vai ficar para sempre em Portugal, ou regressa a casa? - perguntou Fernando
Pessoa.
- Ainda não
sei, apenas trouxe o indispensável, pode ser que me resolva a ficar, abrir
consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio -
retorquiu Ricardo Reis.
- Nenhum
vivo pode substituir um morto - sentenciou Fernando Pessoa.
- Nenhum de
nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto - concordou Ricardo
Reis.
- Bem dito,
com essa faria você uma daquelas odes - observou, muito a propósito,
Fernando Pessoa.
Ambos sorriram.
- Diga-me
como soube que eu estava hospedado neste hotel - perguntou Ricardo Reis.
- Quando se
está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens.
- E entrar,
como foi que entrou no meu quarto?
- Como
qualquer outra pessoa entraria,
- Não veio
pelos ares, não atravessou as paredes. Que
absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasma - contrapôs
Ricardo Reis.
- Os mortos servem-se dos caminhos dos vivos,
aliás nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres como qualquer mortal.
Subi a escada, abri aquela porta, sentei me neste sofá à sua espera -
explicou Fernando Pessoa.
- E ninguém deu pela entrada de um
desconhecido, sim, que você aqui é um desconhecido - ironizou Ricardo Reis.
- Essa é
outra vantagem de estar morto, ninguém nos vê, querendo nós - Disse
Fernando Pessoa.
- Mas eu
vejo-o a si - logo contrapôs Ricardo Reis.
- Porque eu
quero que me veja, e, além disso, se reflectirmos bem, quem é você? - Perguntou,
com grande ironia, Fernando Pessoa, não esperando, obviamente, a resposta.
Ricardo Reis não respondeu. Houve um silêncio arrastado,
espesso. Ouviu-se como em outro mundo o relógio do patamar, duas horas.
Fernando Pessoa levantou-se.
- Vou-me
chegando,
- Já - interrogou-se Ricardo Reis.
- Bem, não
julgue que tenho horas marcadas, sou livre, é verdade que a minha avó está lá,
mas deixou de me maçar - disse Fernando Pessoa.
- Fique um
pouco mais - implorou Ricardo Reis.
- Está a
fazer-se tarde, você precisa de descansar - ripostou Fernando Pessoa.
- Quando
volta?.
- Quer que
eu volte? - pergunta Fernando Pessoa.
- Gostaria
muito, podíamos conversar, restaurar a nossa amizade, não se esqueça de que,
passados dezasseis anos, sou novo na terra - quase implorou Ricardo Reis.
- Mas olhe
que só vamos poder estar juntos oito meses, depois acabou-se, não terei mais
tempo. Quando puder, aparecerei - respondeu Fernando Pessoa.
- Não quer
marcar um dia, hora, local? - insistiu Ricardo Reis.
- Tudo menos
isso, Então até breve - retorquiu Fernando Pessoa.
- Fernando,
gostei de o ver.
- E eu a
si, Ricardo,
Fernando Pessoa abriu a porta do quarto, saiu para
o corredor. Não se ouviram os seus passos. Ricardo Reis foi à janela. Pela Rua
do Alecrim acima afastava-se Fernando Pessoa.
30 de Abril de 2012
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