O amigo mais íntimo do Sol nasceu no inverno, no dia 19 de janeiro. Na Beira Baixa, da neve e das tangerinas que ele não se cansou de exaltar nos seus poemas, assim como as cerejas, um fruto metafórico por excelência. Com gostos bem definidos, como devem ser os de quem reflete a vida e as suas possibilidades, afirmou que é fácil ser poeta; ou então impossível.
Num país como o nosso em que todos se julgam tocados pela lira e pela graça de colher “todo o oiro do dia / na haste mais alta da melancolia”, esta afirmação não é inocente; e mostra muito da postura de Eugénio de Andrade. Ou Branco ou Preto Conhecido como pouco afável, por não cultivar a diplomacia que já no seu tempo se alimentava de autógrafos para a venda de livros, manteve-se fiel a si próprio, e cultivou amizades das que perduram por toda uma vida, até à morte.
Escreveu sobre os seus amigos, uns mais famosos que outros, mas todos com uma inquietação que os aproximava na partilha do seu tempo.
Jorge de Sena, que, sempre igual a si próprio, confessou um dia que foi ele quem lhe arranjou o metódico emprego de funcionário público no Porto, onde Eugénio de Andrade trabalhou toda a vida; trabalho que cansaria facilmente os que não sabem guardar e cuidar, silenciosamente, a Poesia dentro de si. Mas também Sophia e Agustina; e Ruy Belo com quem partilhou a dura condição de um país que não reconhece o amor, mesmo quando toma a forma de um poema.
Para quem ainda tem de Eugénio de Andrade a ideia de um poeta superficial, apenas da natureza e do olhar, recomendo o poema “À memória de Ruy Belo”; para sentir a mistura explosiva de ternura e de ódio que perpassa todo o texto; escrito após a morte do amigo. Mas Eugénio de Andrade ainda consegue ser mais radical e político nos poemas que dedica a Pier Paolo Pasolini ou a essa morte também cruel que foi a de Luís Miguel Nava.
De Sophia, escreveu: “Sempre que penso nela vejo o mar, muito nítido e azul ao fundo. Encontrei-a em tantos sítios!, mas escolho um dia único, não sei se na Granja ou em Cascais, na Foz ou em Corfu, para a trazer aqui, uma luz fina acentuando-lhe a claridade dos olhos e dos cabelos".
Foi sempre muito jovem, de carácter irrepreensível e segura de si, mas também distante, como se tivesse chegado doutro país e não tivera tempo de se adaptar àquele em que vivia.”
No entanto, o testemunho mais comovente vai para os amigos de Coimbra, onde viveu enquanto jovem, cultivando a música, a poesia e o amor, cito: “as discussões eram intermináveis, só possíveis quando a juventude é excessiva, e não nos cabe nas mãos tal ardor. Havia também as lições de matemática (com poemas de Neruda e Maiakovki à mistura) com o Joaquim Namorado, três vezes por semana. Às nove batia-lhe à porta e às vezes ficava o resto do dia na cidade. Dava então um salto ao consultório do Miguel Torga ou procurava o Eduardo Lourenço ou o Carlos de Oliveira. Eram os meus amigos de Coimbra. Deixo ainda da memória desse tempo, um fragmento de um poema que Eugénio de Andrade dedica ao recentemente desaparecido Eduardo Lourenço: “Ali nos encontrámos certo dia,/ éramos jovens e mais jovem que nós/ era a poesia que nos acompanhava./ Hölderlin, Keats, Pessanha e o Pessoa/ eram então – e não serão ainda? – / Os nossos amigos…”
Um testemunho como uma espécie de regresso ao passado. Ao tempo das cerejas. Onde ainda tudo era possível.
Elsa Ligeiro, in Jornal do Fundão, de 19 de Janeiro de 2021
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