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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Santa Ofélia

Cheguei ao fim da leitura das Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. Sensação estranha. Um misto de cansaço, de revolta, de depressão mesmo. Custa-me entender como foi possível a esta mulher lutar tanto por um homem - porque o amava - sem nada receber, ou quase nada, em troca.

De tudo o que já conhecia acerca do universo pessoano, confesso que não fiquei surpreendido com o comportamento do poeta ao longo do tempo que durou o período epistolar: o primeiro de 28/2/1920 a 1/12/1920; depois, de 9/9/1929 a 29/3/1931.

Neste tempo, o poeta esteve muitas vezes ausente. A correspondência transformou-se, a partir de uma dada altura, num mero monólogo. Apenas Ofélia escrevia, escrevia muito, sempre na esperança de o conquistar. Mas esta relação não se assemelha a de outros namorados: O Pessoa nunca quis ir a casa dos pais de Ofélia. Evitava a apresentação de Ofélia aos seus amigos. Chega a fingir que não a vê. Vai a casa da irmã de Ofélia, Joaquina, mas apresenta-se como amigo de Carlos Queiroz, sobrinho de Ofélia. Não é uma convivência fácil. Pessoa falta aos encontros marcados, passa dias em silêncio. Passa grandes períodos sem escrever, sem telefonar. Mete o heterónimo Álvaro de Campos no meio da relação, o que desagrada profundamente a Ofélia.

As primeiras divergências surgem a propósito da família. Um dia ele descobre 4 ou 5 pessoas espreitando atrás das janelas da casa da irmã, quando ele está passar (o que fazia com frequência para a Ofélia o ver), mas, para ele, esse número passa para 148 e escreve, em seguida, uma carta muito dura. Para o poeta, o namoro tem que ser sigiloso. Com a chegada da mãe a Portugal e a instalação da família na Rua Coelho da Rocha, a presença maternal parece contribuir, ainda mais, para esse esfriamento. Outro motivo de discussão era a bebida. Ofélia bem procurava chamar-lhe a atenção para os malefícios da bebida. As idas frequentes ao Abel (a taberna de Abel Pereira da Fonseca, na Rua dos Fanqueiros) desesperavam a pobre da Ofélia. Não têm conta as vezes que ela aborda o assunto nas cartas. Sem nenhum sucesso, como se sabe. Pessoa vai ficando cada vez mais longe da relação, o seu adormecimento é cada vez maior. As razões para este inconsequente namoro são apresentadas já pelo poeta, curiosamente, na carta de 29/11/1920, que marca a primeira ruptura. Num texto, aliás, de grande elevação e de admirável sobriedade (temos de reconhecer), diz o poeta: “O meu destino pertence a outra Lei, de cuja obediência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência de Mestres que não permitem nem perdoam”. Medo do amor?, sustentam uns. Falta de dinheiro para se casar? Dizem outros. O que sabemos é que desistiu.

Ofélia, não. Nunca desiste. Optimista, acredita mesmo que se casará com o poeta da Mensagem. Reza novenas. Pede, insistentemente, ao Senhor dos Passos e a Santa Helena que ajudem o Sr. A.A.Crosse a ter sucesso na participação nos concursos ingleses de charadismo. Um prémio pecuniário resolveria a falta de dinheiro para o casamento. O Sr. A.A. Crosse participou em vários concursos, o último em Maio de 1920, mas o desventurado poeta não teve sucesso. É devota da Nossa Senhora de Fátima a quem pede protecção para ela e para o seu namorado. Tem em S. José um especialíssimo protector. Estando próximo o Natal, pede muito ao Menino Jesus para que em breve tenha a alegria da companhia do “seu” Fernando. Ofélia tem uma grande esperança de ser feliz junto do Fernandinho, com a ajuda de Deus. Reza muito, cada vez mais, à medida que vê o seu grande amor fugir. Reza ao Sagrado Coração de Jesus e pede, com devoção, ao seu Santo António protector, que lhe traga de volta o seu Nininho. Antes de se deitar, nunca se esquecia de fazer suas orações da noite, para que no dia seguinte tivesse, ao menos, uma carta ou um simples telefonema do seu Fernando. Já o namoro se desmoronava como um castelo de cartas, ainda ela pedia a intervenção divina para voltar a falar com o Nininho e o Nininho voltar a gostar dela.

Ofélia demonstra ter um comportamento admirável de fidelidade, um amor puríssimo ao desventurado poeta. “Fui-lhe fiel até à sua morte”, disse ela numa das pouquíssimas vezes que falou do seu namoro com o poeta. “Faz de conta que morri também”, disse ela ainda a propósito da morte do Pessoa.

Esta mulher lutou muito, acreditou sempre. Só desistiu de lutar no dia 30 de Novembro de 1935.
 

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