Pelo que se tem visto, lido e ouvido ultimamente, parece que Portugal descobriu a existência, na Bíblia, de um autor polarizador e polémico: São Paulo.
Quem foi este homem? O que pensar dos textos que escreveu?
Paulo é, na verdade, o único autor do Novo Testamento a cuja identidade podemos associar uma biografia real, mas a reconstituição da sua biografia esbarra de imediato contra um célebre problema: a discrepância entre aquilo que é dito sobre Paulo nos Actos dos Apóstolos e aquilo que Paulo diz sobre si próprio nas suas cartas autênticas. Este problema influi no grau de credibilidade que podemos adscrever aos dados que nos chegaram sobre a biografia de Paulo exclusivamente via Actos dos Apóstolos. Isto porque a lógica mais básica nos exige que pelo menos equacionemos a hipótese de estarem errados os elementos biográficos sobre Paulo em Actos quando estes colidem com o que é escrito pelo próprio Paulo nas suas cartas.
Assim, para muitos estudiosos atuais, a metodologia crítica mais defensável na abordagem à biografia de Paulo implica dar primazia à credibilidade de Paulo nos pontos em que há contradição entre as cartas autênticas de Paulo e outras fontes.
O autor de Actos é claramente um admirador incondicional de Paulo, a ponto de estranharmos, até, o título que, mais tarde, foi dado à obra: seria bem mais consentâneo com o conteúdo do livro o título «Actos do Apóstolo». Paulo é o herói do livro atribuído a Lucas – na verdade, para o autor de Actos, Paulo é uma figura nada menos que heróica: autor de curas milagrosas (16:16-18), de espantosos exorcismos (19:11-12) e dono de poderes que lhe permitem falar ininterruptamente uma noite inteira ou até ressuscitar um morto (20:7-12). Estes dons extraordinários nunca são referidos (decerto por modéstia) nos textos assinados pelo próprio Paulo.
Além destas informações sobre Paulo, estamos também dependentes do livro de Actos para outras que não encontramos alhures. Assim, é somente o livro de Actos a dizer-nos que Paulo era cidadão romano (22:22-29) e que era natural da cidade de Tarso (22:3); só o livro de Actos nos diz que ele se chamava Saulo antes de passar a ser conhecido como Paulo; só o livro de Actos nos diz que ele estudou em Jerusalém com Gamaliel (22:3) e que tinha a profissão de «skênopoiós» («fazedor de tendas», 18:3); só o livro de Actos nos fala da famosa «Estrada» de Damasco.
Outra questão curiosa que se nos depara quando fazemos a leitura comparativa do livro de Actos e das cartas de Paulo é que o autor dos Actos dos Apóstolos, escrevendo já depois da morte de Paulo, não dá a mínima mostra de conhecer a epistolografia paulina e nunca nos mostra Paulo a escrever (ou a ditar) uma única carta. Este facto causa perplexidade já desde o século XIX. Como explicar que «Lucas», alegado companheiro de Paulo nas suas viagens, parece nunca ter lido a produção escrita do seu herói?
No século XIX iniciou-se na Alemanha o estudo crítico da epistolografia de Paulo; e uma das primeiras conclusões a que se chegou foi que o cânone do Novo Testamento contém uma série de cartas que, apesar de proclamarem a sua autoria paulina, não podem ter sido escritas por Paulo. Ou porque o estilo grego e o vocabulário em que estão escritas nada tem a ver com o estilo de Paulo nas cartas autênticas; ou porque são textos que pressupõem realidades históricas que só ocorreram depois da morte de Paulo; ou ainda porque copiam e plagiam de forma tão canhestra textos autênticos de Paulo que é inverosímil ter sido o próprio apóstolo a escrevê-las. Esta observação permite-nos já registar o seguinte facto: Paulo é senhor de um estilo grego único, expressivo – eu diria mesmo arrebatador. Podemos lê-lo sem concordar com uma única palavra que ele escreveu, mas temos de reconhecer que a escrita em si é supremamente convincente.
Os problemas complexos, levantados pelo corpus paulino, suscitaram respostas diferentes da parte dos melhores especialistas no século XIX. No seu livro de 1852 («Kritik der paulinischen Briefe»), Bruno Bauer optou pelo método de Alexandre Magno perante o nó górdio, argumentando que todas as cartas de Paulo que se encontram no Novo Testamento são falsificações escritas no século II, razão pela qual não temos maneira de aceder ao pensamento verdadeiro do apóstolo. Assim, para Bauer era inevitável que o autor de Actos mostrasse desconhecer as cartas de Paulo, uma vez que estas ainda não tinham sido escritas em nome do apóstolo quando o livro de Actos foi composto.
No entanto, o método de análise que permite fazer a triagem entre Paulo e Pseudo-Paulo assenta na premissa de que há um grupo de cartas paulinas do Novo Testamento ao qual é possível reconhecer o selo da autenticidade. Basta alguém não aceitar essa premissa para o corpus estar de novo vulnerável a quem queira argumentar, como fizera Bruno Bauer no século XIX, que todas as cartas são pseudo-paulinas. É por isso que, em 1995, o teólogo alemão Hermann Detering pôde recuperar a abordagem de Bauer, voltando a construir um edifício argumentativo para propor novamente a tese de que todas as cartas de Paulo no Novo Testamento são falsificações (trata-se do livro «Der gefälschte Paulus»).
Para lá da questão de como identificar as cartas autênticas de Paulo, há a realidade extra-académica de que, nas igrejas do mundo inteiro, todas elas (tanto as autênticas como as pseudo-paulinas) continuam a ser lidas como textos canónicos e inspirados. É nelas que assenta, a par dos quatro evangelhos, a religião cristã. Acima referimos o poder da escrita de Paulo: na verdade, são textos a que ninguém consegue ficar indiferente. As cartas de Paulo são susceptíveis de despertar tanto a maior adesão como o maior repúdio.
Há um facto de que não podemos fugir: lidas, hoje, no contexto social e político dos nossos dias, estas cartas levantam problemas que não se colocavam no século XVI, quando foram «redescobertas» no seu potencial renovador e lidas com o maior encantamento possível por todos os protagonistas da Reforma protestante. A aceitação da escravatura, que perpassa de modo implícito e explícito na epistolografia de Paulo (tanto na autêntica como na pseudo-paulina – embora mais nesta última), justificou, durante os duros debates oitocentistas sobre a abolição da escravatura, a posição dos que queriam manter o status quo, permitindo-lhes argumentar com base em passagens de Paulo (hoje maioritariamente atribuídas a Pseudo-Paulo) que o sentimento abolicionista era anticristão.
No século XXI, somos também obrigados a reflectir criticamente sobre o facto de as cartas (pseudo-)paulinas exprimirem pontos de vista que legitimaram durante séculos a subalternização da mulher em relação ao homem, ao mesmo tempo que continuam a dar justificação às hierarquias cristãs que pretendem impedir as mulheres de aceder à carreira sacerdotal. Também o facto de Paulo ter escrito que os homossexuais «não herdarão o reino de Deus» (1 Coríntios 6:9) e que são «merecedores de morte» (Romanos 1:32) coloca, ainda hoje, o cristianismo numa situação de desfasamento retrógrado relativamente a direitos consignados constitucionalmente em todos os países governados segundo o modelo da democracia ocidental.
Referir a palavra «democracia» suscita, já agora, o problema de o comportamento preconizado por Paulo face às autoridades civis (Romanos 13:1-7) ter servido, durante séculos, para refrear movimentos de contestação política vindos de pessoas cristãs; e justificou, tanto para a Igreja como para as hegemonias políticas, o casamento de conveniência entre catolicismo e ditadura a que assistimos, no século XX, em Portugal, em Espanha e em quase todos os países da América Latina. Já em pleno século XXI, algumas igrejas evangélicas americanas ainda se serviram destas palavras de Paulo para apoiar o presidente George Bush na invasão do Iraque.
Assim, não há como negar que o confronto com as cartas de Paulo tem de ocupar uma posição fulcral na compreensão daquilo que foi a história do cristianismo. Paulo marcou indelevelmente a religião cristã (até porque as suas epístolas, cronologicamente anteriores aos quatro evangelhos, são os primeiros documentos que nos chegaram do cristianismo). Por isso, estamos obrigados a dialogar com este apóstolo – por vezes inspirador, por vezes intratável – cujos escritos continuam a interpelar-nos e a lançar-nos grandes, dificílimas perguntas.
Muitos de nós sentiremos, talvez, que não temos resposta para Paulo. Ou sentiremos, então, que a melhor resposta que podemos dar-lhe é empenharmo-nos a sério na leitura dos seus escritos. Com admiração (porque, enquanto homem extraordinário e escritor fascinante, ele a merece); mas também com exigência e imparcialidade.
Frederico Lourenço, fb de 25/8/2021
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