Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente.
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas.
e rosna.
Rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão, em Novos Poemas Póstumos, 1990
Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão, nunca teve um gato, quem o diz, se dúvidas houvesse, é a escritora Cristina Carvalho, filha do poeta, no livro "Rómulo de Carvalho/António Gedeão-Príncipe Perfeito".
Li o livro de supetão, aproveitando o fim de semana passado na Beira Baixa, nas campinas de Idanha, à vista do morro de Monsanto.
O livro fala-nos mais do cidadão Rómulo de Carvalho que do poeta António Gedeão. A narradora consegue agarrar o leitor logo nas primeiras páginas, tão interessantes são os apontamentos que nos dá a conhecer da vida do Professor de Físico-Química, que, por medo, escolheu um pseudónimo para poetar.
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